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Déia Freitas, do ‘Não Inviabilize’, fala sobre perder mãe e pai ainda na adolescência

A criadora de Não Inviabilize analisa o sucesso do podcast, o hate que recebe nas redes sociais e o que rende uma boa história

Por Karin Hueck
19 set 2024, 14h00
Déia Freitas analisa o sucesso de Não Inviabilize e conta sobre sua infância
 (Bruno Geraldi/Divulgação)
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Uma manhã, lavando louça, você aperta o play e ouve a história de uma mulher que descobre que o marido a está traindo porque apareceu com frieiras em casa — na exata mesma semana em que uma colega do clube se queixou da doença.

No dia seguinte, a caminho do trabalho, escuta as peripécias da nora que se voluntariou para arrumar a sogra recém-falecida no caixão, apenas para poder roubar sua generosa cabeleira e transformá-la em peruca. Na outra semana, se espanta com o caso da mulher mortalmente alérgica a frutos do mar, que suspeita que o marido tenha colocado camarão em seu jantar para poder herdar seu seguro de vida.

Essa é a experiência de ouvir o podcast Não Inviabilize, um dos mais populares do Brasil, com mais de 310 milhões de plays. Desde 2020, de segunda a quinta-feira, a criadora e apresentadora Déia Freitas disponibiliza histórias de anônimos de todo o país, levando seus 3,3 milhões de ouvintes mensais às camadas mais obscuras, engenhosas, vis e generosas da psique humana.

São causos que se destacam pelos acontecimentos rocambolescos e personagens cativantes, todos reais. Escutar um episódio é garantia de lágrimas, incredulidade e riso — um pouco por causa dos enredos inacreditáveis, muito por causa do imenso talento narrativo de Déia, que gargalha, chora e se indigna junto com quem a ouve.

“Eu gosto de pessoas. Se eu estiver numa fila de supermercado e alguém estiver contando a história dela, eu vou ficar ali parada escutando”, diz Déia. “Gosto muito da complexidade humana. Acho que todo mundo tem uma zona cinza, alguma coisa que você acha reprovável em si mesmo, mas que quando alguém conta que foi lá e fez, você jubila, né? Desde que eu tenho o podcast, tudo é normal para mim. Eu entendo os motivos das pessoas.” 

Déia Freitas analisa o sucesso de Não Inviabilize e conta sobre sua infância
(Bruno Geraldi/Reprodução)

O desafio de criar bons relatos 

Apesar de não dar muitas entrevistas, Déia topou de primeira falar com CLAUDIA. A conversa foi marcada no apartamento de seu agente, em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.

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Expansiva na contação de histórias, na vida real ela pende para a timidez — característica que se acentuou ainda mais quando viu a maquiadora, o fotógrafo e a repórter que a aguardavam. Logo, porém, estava recebendo massagem facial e adiantando capítulos inéditos de seu podcast para a equipe, como o da lace feita com cabelo de defunta.

Os episódios do Não Inviabilize são separados por temas: histórias de amor, de fantasma, de ET, de sexo, segredos. Todos os dias, Déia e sua equipe recebem e-mails de pessoas ávidas por terem suas vidas narradas pela paulista.

“Temos 15 mil histórias guardadas”, diz. “Mas nem tudo vai entrar, né. Tem coisa muito pesada, de gente cometendo crime, falando que roubou carro. Aí não dá. Também não gosto de história de homem contando vantagem, falando que é incrível. Quem quer ouvir isso? Eu gosto quando tem um corno, uma história de velório, um roubo de marmita na firma”, diz, com a gargalhada característica.

Quando um e-mail é selecionado, a narradora passa para a entrevista por WhatsApp, em que coleta todos os detalhes. Em seguida, a narrativa é roteirizada para o podcast.

É nessa hora que Déia mistura suas histórias às dos anônimos, como diz o lema do podcast: relembra casos da própria vida, aponta para o que julga estar errado, acolhe os injustiçados. Sua voz modula as emoções e se tornou a marca registrada do podcast — tanto que Déia vive sendo reconhecida na rua quando começa a falar.

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Todos os relatos são verdadeiros?

Se engana, porém, quem acha que os relatos são inventados: tudo ali aconteceu de fato. “No máximo, eu mudo um detalhe. Se a pessoa comeu um hambúrguer, mas eu achar que é mais engraçado se ela tivesse comido uma empada, eu vou botar uma empada, entendeu? São detalhes.” O resultado são episódios com todo o jeito de que poderiam ter acontecido com uma prima sua — ou com você mesmo.

 

Morte dos pais a moldaram profundamente  

Nascida em um bairro de classe média baixa em Santo André, na Grande São Paulo, Déia teve um tipo de infância que se extinguiu junto com as décadas de 1970-1980: livre, na rua, cercada de crianças e da família.

Leitora ávida, principalmente da coleção Vagalume, criava para si aventuras infantis: subia em árvore, caía em fossa cheia de lama, levava os amiguinhos para passeios por bairros distantes. Aos 12, porém, perdeu o pai. Aos 16, a mãe, de quem era muito próxima

À essa altura, a apresentadora já trabalhava. Seu primeiro emprego foi redigindo anúncios de classificados para o jornal. Depois trabalhou como vendedora de loja, catsitter, gerente de produto para grandes marcas de moda e foi funcionária de uma faculdade, onde, aliás, ganhou uma bolsa para cursar psicologia.

As perdas (mas também a origem trabalhadora) a moldaram profundamente: “Eu tive muito contato com o luto, né? Acho que por isso sou uma pessoa tão prática”.

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Aos 49 anos, Déia conta que tem um testamento desde os vinte e poucos e que contratou um plano funerário para não deixar gastos quando se for. A mesma lógica se estende à opção por não ter tido filhos. “Eu pensava: ‘não vou ter filhos porque como que eu vou trabalhar e ter uma criança sem um suporte, um apoio, com praticamente a família toda morta, né?’.”

O pragmatismo do raciocínio, porém, contrasta com a forma com que enxerga os outros. Ao contar que certa vez tentou se vingar de uma colega de escola de quem apanhava muito, a podcaster rapidamente vai às lágrimas ao se lembrar que essa mesma menina apareceu grávida, aos 14 anos. “Eu não sei se ela ficou com esse filho, não sei nada. Só sei que ela sumiu da escola. O que será que aconteceu com ela, né?”, lembra, soluçando.

Déia Freitas analisa o sucesso de Não Inviabilize e conta sobre sua infância
(Bruno Geraldi/Reprodução)

Dividir o sucesso com quem está junto

Déia é generosa não só com suas emoções. Com o sucesso do podcast e os recorrentes contratos publicitários (hoje em dia, são poucos os episódios do Não Inviabilize que não comecem com algum tipo de anúncio), sua realidade financeira mudou.

No final de julho, causou comoção nas redes sociais ao anunciar que havia comprado um apartamento de dois dormitórios para cada um de seus cinco funcionários. “Fiquei paralisada quando ela falou do apartamento, levei para a terapia, demorei para entender”, conta Camila Rocha, responsável pelas redes sociais do Não Inviabilize.

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Para Déia, a lógica por trás da decisão é simples. “Eu só tenho tempo para gravar porque tem uma equipe que faz todas as outras coisas para mim. Então quando eu ganho dinheiro, esse dinheiro não é só meu. Eu não estou sendo legal, é um retorno. Ninguém faz nada sozinho”, explica.

Toda a sua equipe, que hoje é de quatro mulheres, é CLT e trabalha apenas quatro dias por semana, sete horas ao dia.

Nem isso, porém, impediu que fosse criticada. A podcaster é bastante ativa no X, antigo Twitter, onde começou a contar as suas histórias há mais de uma década.

Lá, por causa da compra dos apartamentos, foi xingada, acusada de receber dinheiro de tráfico de drogas, de fazer lavagem de dinheiro. O hate só não foi maior do que no começo de 2022, quando Déia anunciou vagas no Não Inviabilize exclusivas para mulheres negras, pardas ou indígenas. Na época, foi ameaçada de processo por “discriminação” contra homens e brancos e teve seu e-mail derrubado.

Déia-Freitas
(Bruno Geraldi/Reprodução)
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A tomada de consciência 

Nesse quesito, Déia não se retrai. Faz questão de ressaltar nas suas narrativas os recortes sociais, incluindo os dos quais faz parte como mulher, negra, de classe trabalhadora.

Essa é uma escolha consciente: “Eu sempre vou puxar para esse gancho”. A consciência de classe é outro traço que carrega desde a infância. Boa parte de sua família trabalhou em chão de fábrica no ABC paulista, berço do movimento sindicalista no Brasil, do qual seu tio Arnaldo — personagem recorrente nos causos pessoais no podcast — fazia parte.

Quando conta suas próprias aventuras, Déia também as traz para esse lado. A podcaster é protetora de animais há anos: tem 4 cachorros e 6 gatos em casa.

Em 2013, participou do resgate de quase 200 animais de um laboratório perto de São Paulo no qual eram realizados testes de produtos cosméticos e farmacêuticos. O caso ganhou notoriedade na imprensa pela ação cinematográfica, no meio da madrugada — e por se tratarem de maus tratos a cães de raça, de beagles.

Rapidamente, as ativistas foram criticadas por causa da invasão. “A gente estava em umas 10 protetoras, todas brancas com grana, eu era a única preta pobre ali. A gente foi chamada de bandida, de terrorista. Eu achava que seria a única presa do grupo. O recorte de classe veio ali já”, conta. 

Deia jamais esperou fazer o sucesso que faz com seu podcast. Todos os meses, mais de 20 mil assinantes pagam R$ 15 para ouvir os episódios assim que são gravados, antes de qualquer edição. Recentemente, foi abraçada por fãs resolvendo burocracias num banco.

Em outra ocasião foi reconhecida no escuro, pela voz, dentro do Museu de História Natural de Nova York. Seus planos para o futuro incluem uma série de episódios sobre pessoas desaparecidas em parceria com o Ministério da Justiça. Na vida pessoal, quer construir uma casa para si e um prédio em Santo André para abrigar toda a sua família. 

O livro favorito de Déia Freitas

Um certo desconforto, porém, a acompanha. Quando perguntada sobre seus livros favoritos, Déia hesita. Cita A Metamorfose, de Franz Kafka, O Idiota, de Dostoiévski e, sem surpresa, os contos de Nelson Rodrigues. Enfim, se decide: seu livro favorito na verdade é Casa de Alvenaria, de Carolina Maria de Jesus.

A obra foi escrita depois do livro mais famoso da autora, Quarto de Despejo, e foca na vida de Carolina Maria depois que se torna uma sensação literária. Déia se identifica com a sensação de não-pertencimento da escritora, que não faz mais parte da favela em que vivia, mas que também não é aceita pelos círculos endinheirados em que passou a circular.

“Eu penso ‘meu Deus, ela conseguiu sair da vida difícil através da obra, dos textos dela’. Mas de alguma forma também não saiu, né? Os escritores, a elite, faziam festas para reverenciar ela. Mas ela mesma dizia que era vista como uma alegoria. Ela não fazia parte, né?”. Déia para. Olha ao redor. “Às vezes eu me sinto assim também. Não sei se faço parte. Não sei se sou uma alegoria, sabe?”

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