“Barbie”: a crise existencial chegou até para a boneca perfeita
Se está difícil para ela, imagina para nós, mulheres reais – é dessa premissa que parte Greta Gerwig no seu delicioso roteiro
Life in plastic, it’s fantastic – será mesmo? Após meses de espera e especulações sobre Barbie, co-escrito e dirigido por Greta Gerwig, o filme finalmente chegou aos cinemas mundiais. Apesar da extensa e intensa campanha de marketing, que espalhou rosa por literalmente todos os cantos de qualquer cidade, e dos trailers e teasers disponíveis, a história dele é surpreendente.
[Este texto contém spoilers]
A Barbie Estereótipo (Margot Robbie), aquela que vem à mente quando a gente pensa na boneca, vive uma vida perfeita em Barbie Land. Ali, ao lado de outras Barbies, entre médicas, enfermeiras e presidente, ela se diverte com festas cheias de coreografia, looks sob medida (e disponíveis no estalar do desejo) e idas à praia. Os dias são todos impecáveis, exatamente iguais e impecáveis, com muito pink e muito riso.
Toda a tranquilidade começa a desmoronar quando, sem aparente razão, a protagonista passa a se questionar sobre a morte – um pensamento um tanto quanto desconexo desse ideal social, onde, aliás, as mulheres comandam e os Kens são só acessórios (como acontecia em 99% das brincadeiras). Ela acorda, então, no dia seguinte com dor de cabeça, indisposição, bafo; a água do chuveiro não esquenta, o pão queima na torradeira, o leite está vencido. Ah! Ela perde o poder de descer os andares da sua casa sem a necessidade de escadas ou elevador.
“O que estaria acontecendo?” Ela se pergunta, “por que, de repente, a vida virou outra coisa, onde as falhas aparecem?” O auge da sua crise foi ter os pés achatados e perder o seu eixo. Envergonhada, inclusive, das celulites que começaram a aparecer nas suas pernas, ela vai em busca de respostas com a Barbie Estranha (Kate McKinnon) – a punk incompreendida que representa todas as bonecas que brincávamos demais, pintávamos a cara, cortávamos os cabelos, indiscriminadamente.
A solução seria ir até o Mundo Real encontrar a garota que brinca com ela para resolver essa conexão criança-brinquedo e “fazer tudo ficar perfeito como era antes”. News flash: não fica. Barbie entra na aventura, na companhia do insistente Ken (Ryan Gosling), mas, ao chegar “do outro lado”, percebe que, na verdade, as Barbies não salvaram o mundo do machismo, da violência de gênero e do sexismo – como elas imaginam em Barbie Land.
Enquanto ela estende ainda mais a sua crise existencial, Ken se sente amado e desejado, em um lugar que respeita a figura masculina acima de tudo. Descobre o famigerado patriarcado e volta para a terra das bonecas com a missão de mostrar aos outros Kens “os benefícios” dessa masculinidade opressora. Cavalos, roupa de couro, casaco de pele à la Rocky Balboa, cerveja e auto intitulação de poder sobre o corpo feminino: eles viram a casinha de cabeça para baixo, contaminando até a paleta colorida.
Do lado de cá, Barbie segue na missão de entender o que acontece consigo mesma, encontrando a sua companheira de brincadeiras, que, na verdade é uma mulher mais velha, mãe, trabalhadora; e entendendo que a Mattel não é lá aquelas coisas. Sem mulheres em cargos de liderança dentro da empresa, ou fora dela, a ilusão da vida perfeita passa a ter as cores acinzentadas da vida em Los Angeles – quando a ficha cai, fica difícil ser o que se era antes.
Ao retornar para o seu país natal, junto com Gloria (America Ferrera) e Sasha (Ariana Greenblatt), elas se deparam com a tomada do poder pelos homens e uma lavagem cerebral masculina nas Barbies que, antes, eram tão seguras e empoderadas de si. Honestamente, gostaria que o filme fosse menos verossímil, mas como o humor tragicômico faz parte da vida da mulher contemporânea, aproveitei as ótimas piadas para dar risada e aliviar a cabeça pensando “bom, pelo menos não é só comigo”.
E não é. Toda uma estrutura que puxa, fio a fio, a nossa vontade de viver torna impossível segurar as barras, mesmo com privilégios, mesmo com amigas, mesmo com redes de apoio. Além: o papel da autocrítica que recai sobre a experiência feminina – porque o homem, enquanto “ser universal” (historicamente falando), não busca saber de si, ele existe e ponto –, é exaustiva.
Se a Barbie está se sentindo pressionada com a vida perfeita, o que sobra para nós, mulheres reais? A personagem de Gloria é um ponto interessante na trama porque, trabalhando na Mattel, passa a desenvolver ideias de bonecas que se assemelham mais com as que são de carne e osso. A Barbie Cansada, a Barbie Depressiva, a Barbie com pensamentos de morte…
Ok, pode soar um pouco mórbido para um filme que é todo rosa, mas a vida em plástico não é fantástica, nem para quem vive esse contexto. Olá, metáfora, bem-vinda! Não é fugindo ou ignorando o feminismo e as lutas sociais de desigualdade das mais diversas que se esgueira da opressão patriarcal-capitalista. Não. É.
Você pode achar que viver num mundo colorido, impecável, controlado, idealizado vai resolver a sua vida (ou já resolve), mas, sinto dizer, não vai. E Barbie está aqui para provar isso. Inclusive, para uma audiência muito maior que os (ótimos) filmes anteriores de Greta, Lady Bird e Adoráveis Mulheres. Aí que mora a potência do longa.
Os dois pés no chão
Barbie não é impecável. Existem algumas pontas soltas na resolução do filme, principalmente nos 10 ou 15 minutos finais – um misto de mensagem inspiracional que beira o piegas somado aos executivos da Mattel perdidos em Barbie Land.
Talvez uma tentativa de ganhar o público com as piadas, que muitas vezes retornam com outra roupagem, a narrativa fica enroscada nela mesma. Contudo, como não há solução aparente para o que vivemos, seria pedir demais que Greta Gerwig resolvesse todos os problemas sócio-políticos-econômicos-culturais com um filme sobre a Barbie.
Considerando todo alcance que ele tem, acabo amando até as suas falhas, porque nem ele próprio é perfeito do jeito que a gente imaginava. Mas é perfeito dentro da sua proposta, do seu público, do seu propósito, que está longe de falar comigo, com você ou com uma juventude um pouco mais “acordada” para as pautas contemporâneas. Ele vai conversar, de forma engraçada, leve e irônica, com aqueles que ainda não entenderam nada. Ou fingem que não.
O único que entendeu tudo (além da diretora) foi Ryan Gosling. Apesar de ser o “just” Ken na história – e aqui, palmas lentíssimas para Greta Gerwig por tornar os homens acessórios –, ele é o ator do filme. Suas camadas de interpretação do subtexto do roteiro são intensas. É perceptível a entrega dele para o papel, para a tragicomédia, para a brincadeira falando coisa séria. Ele ofusca a Barbie de Margot Robbie, que, infelizmente, se sustenta na semelhança de sua aparência com a boneca para garantir uma performance mais ou menos.
Apesar de tudo isso, a experiência de ver o filme é indescritível. É uma história que, pela primeira vez, não tem medo de ser contada. Por isso até que Greta, em entrevista, disse estar surpresa da Mattel ter dado permissão para a produção seguir. Existe uma coragem de rir na cara do perigo (no caso, homens, patriarcado, capitalismo, padrões estéticos, goes on) que é transformadora. Bato palmas e dou risada também pela audácia. Porque se a gente não fizer isso, quem vai fazer?