CineOP reforça o compromisso com a preservação do cinema nacional
Raquel Hallak, coordenadora geral da Mostra de Cinema de Ouro Preto, comenta os principais pontos e objetivos da programação diversa
Durante os dias 21 e 26 de julho, a Mostra de Cinema de Ouro Preto, ou CineOP, levou o audiovisual para a cidade histórica com um recorte da música preta brasileira, honrada em curtas, longas, ficção e documentário. Como já é do seu DNA, preservação, história e educação foram os três pilares da programação, que teve, inclusive, homenagem a Tony Tornado.
No sobe e desce das ladeiras de Ouro Preto, foi possível acompanhar palestras, workshops, debates, masterclasses e algumas sessões (no teatro e ao ar livre), guiados pela motivação de fomentar o cinema brasileiro, dentro do recorte e imagem e som. Foram mais de 20 mil pessoas beneficiadas pelas ações da CineOP, além dos 40 mil acessos da plataforma online – onde era possível para o pessoal de casa assistir aos filmes.
Conversamos com Raquel Hallak, coordenadora geral da Mostra, sobre a relevância do cinema nacional, direito ao acesso e educação desde a primeira infância para aproximar crianças e jovens da sétima arte, vem ler:
De onde partiu a provocação e por que virou esse ponto de encontro entre o cinema e o som para a temática da CineOP deste ano? E, a partir disso, como foi pensar nas ramificações das duas áreas e como elas se convergem ou não dentro da programação que é super multifacetada?
Fazemos um programa em Minas Gerais chamado Cinema Sem Fronteiras. Começa em janeiro com o Festival de Tiradentes, com foco no cinema brasileiro contemporâneo. Em junho temos a Mostra de Ouro Preto, com foco na preservação, história e educação, e, por fim, Belo Horizonte, com foco no mercado. Em termos de programação, os três eventos colocam o cinema em diálogo com as outras artes. Acreditamos que não há barreira, que o cinema, como sétima arte, apresenta todos os segmentos na tela. Então, obviamente, o audiovisual é o carro-chefe, é a razão de ser, mas com essa preocupação de aproximar aos shows musicais, as oficinas, a formação, exibição e também difusão.
A CineOP sai um pouco desse escopo tradicional de festival de cinema e estrutura a programação em três temáticas. É um evento intenso e denso em termos de conteúdo. Ao mesmo tempo, são dois congressos dentro de um festival de cinema, o Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais e o Encontro da Educação. Então, estamos sempre pensando como que pode se dar essas conexões entre cinema e educação, cinema e história, e cinema que olha para o passado com um olhar contemporâneo.
A definição de cada temática se dá em conjunto com os curadores. Essa visita à música preta no Brasil começou a ser pensada no ano passado, em uma tentativa de superar a temática do cinema indígena, porque foi realmente um marco trazer essa discussão do cinema indígena, essa necessidade de ele estar inserido na história do cinema brasileiro, porque não é reconhecido. A ideia da música preta no Brasil vem associada à discussão do som, da imagem e do corpo, mas também da preservação. Onde que estão essas imagens? O que essas imagens estão nos dizendo?
Achei curioso que a programação é, como você disse, ao mesmo tempo um congresso e uma mostra, e, então, a programação de filmes é muito compacta fisicamente e muito ampla online. Quando foi que vocês tomaram essa decisão, e como vocês trabalham esse público que não está aqui em Ouro Preto?
A CineOP sempre teve, historicamente, três espaços de exibição, mas agora estamos reduzidos porque o Cine Vila Rica, nossa inspiração para idealizar o evento, está fechado para reformas. Inclusive, um dos legados da CineOP foi também buscar recursos para que esse cinema pudesse ser recuperado e não fechado. Uma das questões que temos como limite é o espaço de exibição mesmo, e como fazemos um evento que fala de duas vertentes, educação e preservação, bem palpáveis e, ao mesmo tempo, carentes de políticas públicas.
A programação tem debates intensos, 87 profissionais divididos em 31 debates, e com a experiência da pandemia, de levar uma programação online, Ouro Preto passou a ter um alcance internacional surpreendente. Estar online é possibilitar uma janela para o mundo, e isso aprendemos que não poderíamos deixar de continuar. E como são muitos filmes raros, poucos vistos ou circulados, filmes que estão ali nas cinematecas, enfim, é bem estratégico essa disponibilidade online, porque muitas vezes o nosso público do festival está muito focado, principalmente nessa retomada do Ministério da Cultura, nessa volta ao diálogo que estava parado há sete edições. Não adianta eu ficar falando de criação de rede se não tivermos o governo presente, não adianta falar de uma política nacional de educação digital se o MEC não estiver presente para ouvir, para dar resposta, para ter essa troca. Então, essa edição marca o retorno desse diálogo.
A programação tem 125 filmes, e aí tem também um outro diferencial, porque boa parte da programação da Mostra da Educação é de filmes feitos exclusivamente para a Mostra de Ouro Preto, feitos por alunos, por comunidades, por instituições de ensino, ONGs. Isso já traz antecipadamente um olhar e uma reflexão sobre a temática do cinema e educação digital, incentivando a produção desses filmes em uma conexão do educador com o aluno. Porque, um outro desafio que também se intensificou após a pandemia, em que tudo vira audiovisual, é que o jovem não quer só assistir, quer também ser agente ativo do processo.
Com esse espaço limitado, não adianta colocar sessão de manhã, de tarde e de noite. A cidade tem uma geografia que desfavorece o deslocamento, cuja passagem de ônibus é caríssima. Então, através das sessões cine-escola, forma-se uma plateia mais ampla, já que não é só a sessão, e sim todo o trabalho que fazemos de trazer os alunos que pela primeira vez. São mais de 3.500 alunos, e através deles estamos, de certa forma, gerando uma interface com a família, tentando ajudar nesse processo de integração das suas comunidades, dos distritos e bairros.
Sobre a ressonância do festival em Minas Gerais, como funciona esse um ano até a próxima edição, quais são as atividades que vocês organizam aqui e as propostas? Tem uma preocupação com o acesso de crianças e adolescentes ao conteúdo audiovisual, como que vocês fazem um acompanhamento educacional?
Todos os filmes que estão sendo exibidos aqui são acompanhados de um material didático que elaboramos para que os professores possam dar continuidade dos temas abordados em sala de aula. A ideia é formar plateia e, ao mesmo tempo, desenvolver um senso crítico sobre aquilo que está se vendo, sobre a história que está sendo contada. Sem contar que temos oficinas na comunidade formando professores, com ajuda da Rede Kino neste mapeamento. Temos a intenção de capacitar crianças e professores para trabalhar esse audiovisual em todas as faixas etárias, a partir de cinco anos, mas com foco principal na educação básica, que é onde mora a possibilidade de construir, de fato, um instrumento transformador.
Os debates que pude acompanhar mostraram um certo ranço da iniciativa privada, e mais uma vez uma descarga no setor público. Você imagina uma mudança de paradigma?
Acho que tudo é vontade política, e essa vontade política é o termômetro e o guia do que vai ser priorizado e do que vai ser efetivado. Estamos vendo uma reconstrução do Ministério, que pela primeira vez tem uma diretoria de preservação. Saímos de uma situação em que a preservação era o patinho feio, e agora pela primeira vez está se discutindo preservação, formação, produção, distribuição e exibição juntos, formando esse elo, até porque a preservação, hoje, é a ponta de lança da indústria. No audiovisual, quantos filmes precisam ser restaurados, digitalizados? Então, se você pensar no ativo econômico, a gente tem um volume gigantesco.
Dentro dessa questão da preservação, como que os filmes brasileiros chegam nas pessoas? É muito legal que tenha inúmeros filmes para as pessoas assistirem online, mas também temos vários filmes que vão para festivais internacionais, mas nunca temos o acesso a eles. Como funciona a preservação do que é atual?
Essa é a principal discussão da mostra de Belo Horizonte. É quando falamos como que esses filmes chegam, por que que não chegam, como deve chegar, enfim. Quando você preserva, o acesso já está embutido dentro do conselho de preservação. Você preserva pra dar acesso, já é automático. Mas se a gente não tem no país uma cota de tela, se a gente não tem uma regulamentação do VOD, se a gente não tem uma política de ocupação das salas comerciais, esse cinema não vai chegar.
Não adianta você também ter uma [lei] Paulo Gustavo, que você vai fomentar uma produção, se essa produção também não vai escoar, não vai chegar. Que é outra discussão que estamos conversando e vamos intensificar, porque também não adianta você preservar e ficar escondido numa Cinemateca, nas prateleiras etc.
Nunca houve nenhuma campanha, por exemplo, junto a realizadores, explicando como que preservar? Os cineastas brasileiros estão colocado seus filmes em um HD, e não vindo aqui escutar tecnicamente o que está funcionando. Nós já perdemos 60% da nossa produção lá atrás, por incêndio, inundação etc. Nós estamos perdendo muito mais agora no volume do que está sendo feito, entende? Então esse acesso é uma questão mais global de mercado.
É possível debater política pública que faça as emissoras de televisão, que ainda têm o poder, trabalhar mais o cinema nacional, a memória, a preservação?
É outra proposta de evento que estamos doidos para fazer, principalmente com as TVs públicas e as TVs universitárias. Olha que universo maravilhoso a gente tem! TV pública, educativa e universitária. Mas aí é coisa de interesse, vai esbarrar interesse, mas se você pensar que você tem uma TV na comunidade, que fala com a comunidade, que a comunidade quer ouvir… Tanto é que uma parte da programação a gente concede para a TV UFOP, afinal estamos dentro de uma cidade universitária. A mesma coisa com o Itaú, que é patrocinador – uma parte está indo para o streaming deles [o Itaú Cultural Play], onde fica até dia 9 de julho.
A questão é que as plataformas não exibem filmes que consideram antigos. Mas não são filmes antigos, e sim feitos em épocas diferentes. Mas são novos! Temos que acabar com isso dos festivais buscarem apenas o ineditismo, enquanto estamos vivendo, desde a pandemia, uma espécie de nostalgia. Temos um excesso de telas ao mesmo tempo que um interesse em assistir um filme em película restaurada.
Eu sei que a gente está numa edição que fala especificamente sobre música preta brasileira, mas não só dentro desse recorte, tem um outro recorte que seria de gênero. De mulheres negras, mulheres brasileiras. Como que esse resgate também influencia na divulgação de produções feitas por mulheres no Brasil, cria um lugar de reafirmação?
Eu lembro que a gente fez um recorte dedicado às mulheres pioneiras no cinema. E é isso, quando você faz, traz essa produção que ninguém conhecia. A presença feminina no cinema brasileiro é cada vez mais forte, não só quem está produzindo, mas também quem está pensando, os coletivos, críticas de cinema, enfim. Então eu acho que essa presença da mulher, ela se dá no passado, presente e futuro.
Obviamente que a gente está vendo no contemporâneo, e depois principalmente do digital, uma presença muito maior e mais respeitosa. O cinema sempre foi um lugar masculino. No entanto, é interessante observar a configuração das produtoras de cinema. Elas são constituídas marido e mulher, ou casal, hoje já nem é marido, é casal, em que o homem sempre está na frente da direção, e a mulher na produção.