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“Carvão”: Carolina Markowicz conversa com Walter Salles sobre o filme

Filme brasileiro que foi destaque no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo trabalha o absurdo na sociedade brasileira

Por Paula Jacob
7 nov 2022, 09h14
Carvão, filme de Carolina Markowicz
 (Pandora Filmes/Divulgação)
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Um dos maiores destaques nacionais deste ano, espera aguardada após a estreia no Festival de Toronto, Carvão, da diretora e roteirista Carolina Markowicz, chega às salas nacionais. Protagonizados por Maeve Jinkings, o filme acompanha uma família que possui uma pequena carvoaria no quintal de casa, em Joanópolis, interior de São Paulo. Irene, Jairo (Romulo Braga) e o filho, Jean (Jean Costa), dividem a rotina com o avô, um senhor bastante debilitado pela idade avançada, que já não sai mais da cama, não ouve também não fala.

A vida quase pacata ganha uma reviravolta com a chegada de um estrangeiro, interpretado por César Bordón (ator argentino conhecido pelos filmes Relatos Selvagens e Mulher Sem Cabeça), que aluga um dos quartos por uma boa quantia de dinheiro. A presença estranha causa um sentimento de perigo iminente, fazendo Irene se questionar se vale a pena colocar tudo a perder. Flertando com a nossa ideia do que seria o absurdo, Carolina questiona a falta de realidade do brasileiro e se mostra uma das diretoras nacionais mais talentosas dessa geração. A seguir, ela comenta sobre as entrelinhas de Carvão com ninguém menos que Walter Salles:

Walter Salles: Não há cinematografia que sobreviva sem que jovens cineastas venham redefinir o que foi realizado pelas gerações anteriores, oferecendo novos reflexos de uma identidade nacional em transformação acelerada. “Carvão” me impactou justamente por possibilitar isso. Pela sua extrema originalidade, pela forma como mescla diferentes gêneros cinematográficos para falar do Brasil atual, pela rara expressividade de suas imagens, pela excelência de seus atores e pela precisão e inventividade de sua direção. Como nasceu um filme tão único e necessário quanto “Carvão”? 

Carolina Markowicz: Cresci no interior de São Paulo e desde sempre me interessaram demais as peculiaridades desse ambiente. É muito interessante e contraditória a sensação de liberdade que se tem ao viver no interior: você supostamente tem mais liberdade desde cedo para ir e vir; ao mesmo tempo, você nunca é tão vigiado, em termos de se moldar a padrões e expectativas. 

São tradições arraigadas, que ajudam a compreender por que o conservadorismo acaba ganhando tanta força e longevidade. É um ciclo que se retroalimenta. E se de algum modo explica porque estamos assim hoje, é possível que estejamos assim amanhã. Creio que Carvão foi minha tentativa de olhar pra isso, de nos perceber, para evitar ou aplacar o “estar assim amanhã”.

Os absurdos com os quais nos deparamos hoje em dia em nosso país foram o gatilho para que eu imaginasse essa história, onde o bizarro é trivial e onde qualquer interesse escuso pode ser justificável em nome de Deus ou da família. 

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Carvão, filme de Carolina Markowicz
(Pandora Filmes/Divulgação)

WS: Nos anos Bolsonaro, aquilo que parecia moralmente inaceitável no Brasil dos anos 2000 se torna brutalmente corriqueiro. Ao mesmo tempo, o país volta ao mapa da fome, e questões sociais que pareciam estar em parte atendidas se aguçam. Há hoje um esgarçamento do tecido social brasileiro que “Carvão” capta bem, evidenciando como o cinema brasileiro é capaz de oferecer reflexos potentes de nossos conflitos.  Você poderia falar disso? 

CM: É precisamente essa a intenção de “Carvão”. De fato, a gestão Bolsonaro conseguiu um retrocesso assustador em todos os aspectos. Essa flexibilidade moral e a naturalização da barbárie são elementos dessa receita devastadora para nosso país e futuras gerações. O ataque ao nosso cinema se dá justamente por sua capacidade cirúrgica de crítica, de contundência. 

Em “Carvão”, a tentativa é promover uma crítica de maneira ácida aos poderes políticos e religiosos que manipulam, através de inverdades e falácias, em benefício próprio. É uma sátira da inversão de valores em que estamos confinados.

Carvão, filme de Carolina Markowicz
(Pandora Filmes/Divulgação)
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WS: O crítico Carlos Marcelo diz que o cinema brasileiro recente indica duas formas possíveis de superação de impasses em um país despedaçado: Intensificação de conflitos (“Bacurau”), exacerbação dos afetos (“Deserto Particular”).  Você pensa que “Carvão” pertence a uma dessas duas tendências, ou abre uma nova frente de investigação e de propostas? 

CM: Que bonito isso, né? A riqueza do cinema brasileiro, de nossos artistas e cineastas é tão vasta que muitas vezes discorremos sobre elementos em comum, mas com sensibilidades únicas e profundas. Que orgulho tenho do nosso cinema e de nossos artistas. Me emociona pensar em como nos mobilizamos em direção a um entendimento para um Brasil melhor com nossas vozes tão únicas e ao mesmo tempo, diversas.

Creio que “Carvão” propõe uma satirização do abjeto. Uma tentativa de ver e de se ver e constatar que o que chocava não possui mais esse poder. A aspereza, dessensibilização, a brutalidade armada: o filme metaforiza esses elementos, na tentativa de que se enxergue nisso, o ultraje que é. 

Importante ressaltar: você citou dois nomes masculinos potentes. Me sinto honrada em me alinhar também com essa geração de cineastas brasileiras mulheres, que agora estão mais presentes e com obras reconhecidas nas telas, com mais espaço.  Que orgulho ver os filmes de mulheres brasileiras ganhando o mundo como vêm fazendo. É fundamental esse movimento de reversão de modelos consolidados que vem ocorrendo. Vozes femininas, vozes do interior e questões sensíveis tratadas não necessariamente nas grandes cidades.

Carvão, filme de Carolina Markowicz
(Pandora Filmes/Divulgação)
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WS: “Carvão” é um filme marcado por atuações excepcionais, com uma  Maeve Jinkings em estado de graça. Ela é ao mesmo tempo o sismógrafo e a bússola moral do filme, e podemos ler em seu rosto toda a extensão dos conflitos com os quais a sua família se defronta.  Os não-atores, como o menino que vive o personagem de Jean, me lembraram os jovens atores de “Onde é a casa de meu amigo”, do mestre Abbas Kiarostami.  Essa coabitação entre atores e não-atores é um desafio complexo, e “Carvão” a possibilita de forma luminosa. Como foi o processo de preparação dos atores do filme para chegar a esse resultado? 

CM: Tive a honra de ter atores brilhantes e extremamente envolvidos com o filme, o que por si só já faz com que o processo comece de um lugar privilegiado. Maeve, César Bordón, Rômulo Braga, Camila Márdila, Pedro Wagner. Atores com quem sempre sonhei trabalhar e com quem tive a honra de construir o tom peculiar do filme. Buscamos juntos essa mescla de tons, essa estranheza.

A inserção de não-atores foi fundamental para entender o modus operandi da pequena cidade, a prosódia, os trejeitos, e me agrada demais essa mistura entre atores excelentes e experientes e pessoas que nunca sequer quiseram atuar. É um choque térmico em que a naturalidade total acaba sendo a única intersecção possível para funcionar. Não há meio termo.

O garoto Jean foi um presente. Um menino de uma sensibilidade e inteligência impressionantes. Era assustador como ele captava tal qual um radar a energia de cada cena e contribuía com o que ela demandasse, ora seguindo o roteiro, ora no improviso.

Isso também ditou o tom do filme. Tive a ajuda valiosa da Silvia Lourenço na preparação também. Foram muitas conversas, vivências. Em termos de tom, a regra era: por mais absurdo que tudo aquilo fosse, jamais piscaríamos para o espectador.

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Carvão, filme de Carolina Markowicz
(Pandora Filmes/Divulgação)

WS: “Carvão” começa a nascer para o mundo em uma hora que os filmes brasileiros se tornaram raros, por causa do cerco que um governo de extrema direita fez ao setor cultural brasileiro nos últimos 4 anos.  O que você espera desse contato do filme com plateias de diferentes países?

CM: Espero que de alguma maneira fique claro o momento pelo qual estamos passando, em termos de atmosfera inclusive. Numa terra onde brutalidade é moeda, para que serve a cultura?  Onde impera o abjeto, não há diálogo, não há horizonte. 

Esse conservadorismo não é apenas “privilégio” nosso, mas uma tendência em muitos lugares do mundo, se cada pessoa que assistir ao filme passar por uma reflexão sobre o momento que estamos vivendo já será uma grande conquista.

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