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‘A Filha Perdida’ evoca armadilhas que a maternidade pode estender no ego

Longa-metragem baseado em romance de Elena Ferrante marca a estreia de Maggie Gyllenhaal na direção

Por Joana Oliveira
16 fev 2022, 08h59

É difícil entender o que acontece com Leda. Na primeira vez que a vemos, a mulher de meia idade aparece em um close up extremo e desfocado enquanto caminha na noite com ar de desassossego. Foge? De quem? Do quê? Depois ela cai na areia, desaba à beira-mar. Na segunda vez em que a vemos, goza da sensação de liberdade antecipada enquanto dirige pelo litoral de algum lugar paradisíaco. Em A Filha Perdida, adaptação do romance homônimo de Elena Ferrante, disponível na Netflix, a professora de literatura chega a um vilarejo grego para desfrutar de suas idílicas férias de verão rodeada de livros e silêncios. Mas tudo é quase imediatamente estranho, a começar pela própria personagem – brilhantemente interpretada por Olivia Colman, forte candidata ao Oscar de melhor atriz em 2022 – que parece não ter habilidades sociais, é assustadiça e um tanto quanto estabanada.

Ela só quer ler, escrever e nadar, mas sua tranquilidade é interrompida nos primeiros dias pela chegada de uma numerosa e barulhenta família norte-americana ao local. Sem conseguir restaurar sua paz, a professora dedica-se a observar os personagens do grande grupo, focando-se, quase obsessivamente, na jovem mãe, Nina (Dakota Johnson) e em sua filha pequena, Elena, que constantemente demanda atenção.

A Filha Perdida marca a estreia na direção de Maggie Gyllenhaal, que envolve a narrativa em um manto de melancolia apropriado ao título, mas também apresenta um filme imprevisível, conflituoso e doloroso. E parte de sua maestria está na resistência obstinada de explicar o mistério de Leda, essa mulher sozinha – que, por estar sozinha, é geralmente considerada solitária ou irrelevante – mergulhada em si mesma. Apesar de educada, ela parece esperar ansiosamente que cada interação com outra pessoa acabe o mais rápido possível. Quando a gravidíssima matriarca da família barulhenta lhe pede que ela afaste sua cadeira por alguns metros para que o clã possa ficar junto na mesma faixa de areia, Leda se nega veementemente diante da perplexidade da outra. Ela está “bem” ali.

Enquanto segue com os olhos Nina e Elena, a protagonista também é observada pela jovem mãe, que a fita com certo desejo de cumplicidade. A solitude que caracteriza a figura de Leda parece ser o que Nina mais deseja. Na primeira vez que Leda revela ser mãe de duas jovens, de 25 e 23 anos, ela é categórica ao dizer, com olhar firme e ênfase adjetiva: “filhos são uma responsabilidade esmagadora”.

A Filha Perdida
(Divulgação/Netflix)

A interação com a família desconhecida desperta na protagonista lembranças da infância de suas próprias crias, quando ela era uma jovem acadêmica cansada do malabarismo entre obrigações (e ambições) profissionais e a rotina doméstica de guerra contra seus próprios impulsos na convivência com duas pequenas filhas pegajosas. A narrativa, no entanto, está longe de limitar-se ao cabo de guerra entre maternidade e carreira e mergulha em um terreno mais sombrio e radical: a noção de que a maternidade pode roubar o eu de maneiras irreparáveis.

Essa é a reflexão que parece atravessar o rosto da personagem em todos os momentos. São memórias que lhe produzem mal estar físico, por mais que seus olhos teimem em segurar como represa infinitas lágrimas – e quantas lágrimas Colman é capaz de acumular apenas para deixá-las correr no momento certo! Mais do que flashbacks, tais cenas transcorrem quase que de forma paralela ao presente, como um jogo de espelhos que tentam dar respostas sobre as estranhezas de Leda e porque ela faz o que faz.

Leda é o tipo de pessoa que consegue segurar um bolo de chocolate que lhe é gentilmente oferecido e não comê-lo. É a mãe capaz de negar um beijinho no dedo machucado da filha que está aos prantos e implora por ela. Em silêncios ou gestos, recusa-se a fazer o que é esperado dela apenas porque pode. É uma mulher que se agarra, como uma corda de salvação, à autonomia, que ousa dizer não quando tudo o que se espera de uma mulher-mãe é a mais absoluta abnegação. E, mesmo para uma audiência versada nos direitos das mulheres e no discurso de igualdade de gênero, Leda causa desconforto.

É uma mulher sozinha cujo mistério resiste a ser explicado. E, ainda que o espectador acabe por descobrir um divisor de águas em seu passado, muitas das suas escolhas – uma delas, em particular, durante as fatídicas férias – permanecem sem um porquê. Em sua ambiguidade de indivíduo doce e resoluto, mas também capaz de fazer algo infantil, voluntarioso e inexplicável, ela se converte em alguém quase suspeito, quase digno de desconfiança até mesmo por parte de quem assiste. E que mulher que se atreve a apegar-se a si mesma não o é?

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