O chá de Alice
Um conto da leitora Renata Baglioli sobre a triste realidade da agressão a mulheres e crianças
Ela se chamava Alice, tal qual a menina que morava no País das Maravilhas. Mas o mundo dela não era exatamente uma maravilha. Ela não pediu para nascer e, como ninguém a reivindicou, também ficou claro que sua mãe não havia pedido por isto.
Renegada e relegada à sua insignificância, Alice vivia às sombras, procurando o buraco, a toca do coelho. Sem amigos ou testemunhas, vivia cercada de bonecas maltrapilhas. Servia-lhes o chá da tarde, papeavam e, quando olhava no relógio, era hora de voltar ao mundo real. Seu padrasto logo chegaria em casa, bêbado, e bateria em sua mãe, como de costume. Murmuraria alguma indecência para a menina, uma baforada em seu rosto, e dormiria o sono dos culpados.
Sua mãe não lhe acolheria. Era mais uma Maria, a Maria das Dores.
Um dia ela decidiu se vingar. Rasgou o vestido gasto, bateu-se no rosto com o conto de Lewis Carroll, um safanão, e foi dar queixa na polícia. O padrasto foi preso. Ainda trêmula, Alice retornou à casa buscando a aprovação da mãe. A Maria-de-todas-as-Dores não lhe perdoou, seu olhar atravessou a menina, a mãe nunca mais lhe dirigiu a palavra.
Alice descobriu, tardiamente, que a mãe não era o Chapeleiro que a menina desejava, estava mais para a Rainha de Copas. Não tardou em ordenar: “Cortem-lhe a cabeça!”.
E foi assim que a menina Alice perdeu a cabeça. Não teve mais Chá de Bonecas, imaginação ou infância. A menina já nem mais lembrava de seu nome, se perdeu na vida e não achou, sequer procurou, pelo tempo perdido. Ela sabia que nunca seria moradora do utópico País das Maravilhas.
A leitora Renata Barrozo Baglioli é curitibana, ex-advogada atuante e abrindo caminho pela escrita leve, atenta a novos olhares sobre as coisas.