Os 40 anos de Yentl: a estreia de Barbra Streisand como diretora
Um dos projetos mais pessoais da estrela foi fruto de muita insistência e a certeza de que ninguém mais conseguiria contar a história como ela
Em 1983, Barbra Streisand estreou atrás das câmeras com um musical em tempos em que o gênero era considerado cafona. Falava de sexismo, potencialmente homossexualidade, repressão sexual, religião, romance e feminismo. Yentl foi sucesso, ganhou dois Oscars – merecidos, pela trilha sonora – mas a estrela foi desprezada na hora das indicações como melhor diretora. Tanto que se recusou a comparecer à festa. Quarenta anos depois, a estrela está para lançar sua autobiografia (em novembro) e, antecipando o evento, está celebrando o aniversário de uma de suas obras mais elogiadas.
O álbum Yentl: Deluxe 40th Anniversary Edition faz parte da celebração e traz um rico material inédito, com 15 faixas adicionais, algumas que incluem as demos que Barbra gravou em sua sala em um toca-fitas estéreo, assim como a narração demo, todas com a atriz acompanhada apenas por Michel Legrand ao piano. Para fãs? Imperdível.
O fato de que mesmo com sucesso comercial Barbra tenha sido ignorada sistematicamente por Hollywood ainda não mudou. Ela pode ter dois Oscars em casa (um de Atriz e outro de Melhor Canção, Evergeen, de Nasce uma Estrela), mas o machismo preveniu que ela sequer pudesse ser considerada uma boa diretora. E é.
Precisaram passar algumas décadas para que Yentl chegasse às telas. Barbra se encantou com o conto Yentl: The Yeshiva Boy, escrita por Isaac Bashevis Singer ainda em 1968, quando estava terminando Funny Girl, o filme pelo qual ganhou o Oscar de Melhor Atriz, em 1969. Embora os direitos do livro tenham sido comprados para ela estrelar o filme, e o diretor tchecoslovaco Ivan Passer tenha feito um primeiro rascunho, ele não queria Barbra no elenco justamente porque a essa altura ela era uma grande estrela mundial. Para ele, ter uma celebridade no elenco prejudicaria o filme em vez de ajuda-lo. Eventualmente, Ivan saiu do projeto.
Em 1973, enquanto gravava Nosso Amor de Ontem (outro que completou 50 anos em 2023), a atriz buscou apoio para seguir com Yentl, mas passou a ser considerada ainda pior do que famosa demais. Passou a ser “muito velha” para o papel principal. E muito feminina, jamais convenceria alguém como um homem. Pelo menos nenhum dos executivos homens. Em três anos, até Barbra passou a acreditar que eles estavam certos, e isso em 1976, quando gravou Nasce Uma Estrela. O que os estúdios não contavam era que, se não fosse estrelar, ela ainda assim deveria dirigir. E quem acompanha a carreira de Barbra Streisand sabe que quando ela está determinada, consegue o que quer.
Aos poucos, também voltou a querer o papel principal e os estúdios ficaram ainda mais ressabiados com o projeto. Agora a dúvida era como ela – uma diretora estreante – lidaria com um projeto multimilionário. Também questionaram a escolha dela de transformar a história em um musical, que não era mais um gênero comercial o suficiente. Sim, por sugestão dos letristas e amigos de Barbra, Alan e Marilyn Bergman, que viriam a ganhar mais um Oscar com o filme, Yentl deixou de ser um drama para ser cantado. Diante de tanta recusa e questionamentos, o projeto passou a ser uma questão de honra para Barbra. Mesmo com ofertas milionárias para fazer shows e desistir.
Yentl pode ser considerado um sucesso de crítica e bilheteria, mesmo que modesto. A ver se em sua biografia Barbra confirma uma história que, segundo consta e é reforçado com a dedicação do filme ao seu pai, que ela ficou ainda mais obcecada em filmar Yentl depois de visitar o túmulo de seu pai no Cemitério Mount Hebron. Os sinais eram claros: ela pediu ao seu irmão que tirasse uma foto dela ao lado da lápide e, quando viu, o túmulo de Emmanual Streisand estava diretamente ao lado do de um homem chamado Anshel, que era justamente o nome do irmão morto de Yentl e que ela adota quando assume uma identidade masculina. Com uma consulta com um médium ela teria tido sua confirmação de que era para ela insistir e eternizar a história no cinema.
Ao todo, Yentl levou nada menos do que 15 anos para começar a rodar, depois pelo menos 20 versões de roteiros. E, claro, para quem ainda não viu o filme, a história é sobre Yentl, uma garota judia que, naquele tempo, apenas por ser mulher, não podia sequer estudar, mas, quebrando as regras, seu pai a ensinava em particular. Sempre curiosa, ela teve que tomar uma decisão radical após a morte dele: se vestiu como homem e foi em busca de mais conhecimento. O que complicou tudo foi se apaixonar por um colega, Avigdor (Mandy Patinkin), que era noivo de Hadass (Amy Irving). Quando o noivado dos dois é desfeito, Yentl não tem como escapar de substituí-lo e se casa com Hadass, que se apaixona por Yentl. Isso mesmo, há 40 anos os o filme lidava com troca de gêneros e homossexualidade, mas muitos reclamaram que acaba com um final “tradicional”: o casal hétero reunido.
Da trilha de lindas canções (a minha favorita é Where is it Written), Papa, Can You Hear Me e The Way He Makes Me Feel foram indicadas ao Oscar (a primeira ganhou e contou com ninguém menos do que Donna Summer a interpretando na cerimônia) e Michel Legrand ganhou seu último Oscar pela trilha sonora completa de Yentl. Por isso ser tão significativo, o álbum comemorativo vai trazer alguns momentos tão próximos do compositor e sua intérprete. Uma grande oportunidade para marcar as quatro décadas de um grande musical. E quem quiser rever a obra, está no acervo da MGM Plus.