Conheça Patrícia Florissi, brasileira que se tornou líder no Google Cloud
Nascida em Recife, a diretora de tecnologia contrariou todas as adversidades e hoje ocupa cargo de liderança em multinacional norte-americana
A força feminina vem dominando a tecnologia há algum tempo, mas ainda existe um longo caminho a se percorrer quando o assunto é a equidade de gênero na área. Contudo, um nome específico vem expandindo fronteiras e excedendo expectativas para reverter esse cenário: Patrícia Florissi. Nascida em Recife, a brasileira foi uma das primeiras pessoas a programar um computador pessoal em território nacional. Atualmente, tornou-se diretora técnica no OCTO do Google Cloud, em Nova Iorque, auxiliando algumas das maiores organizações do mundo a resolver problemas tecnológicos complexos.
Mas engana-se quem pensa que este salto profissional aconteceu da noite para o dia. A jornada de Florissi começou há décadas, em meio à ditadura. O cargo que ocupa no Google Cloud desde 2020 é apenas consequência de anos de esforços físicos, intelectuais e emocionais.
Ela deixa claro em entrevista à CLAUDIA: Não é a sua intenção fazer com que as suas conquistas soem inalcançáveis para as jovens garotas que aspiram seguir neste ramo. Muito pelo contrário: mais do que nunca, o seu maior desejo é ampliar o acesso ao conhecimento para que histórias como a dela se tornem cada vez mais corriqueiras.
Todavia, é impossível não ficar impressionado com a grandiosidade desta líder apaixonada pelas engrenagens do futuro. A seguir, Patrícia Florissi revela as maiores alegrias e desafios em ser uma mulher no meio da tecnologia, além de detalhar os pontos mais importantes de sua trajetória que começou a partir de um simples teste vocacional. Confira:
CLAUDIA: Você sempre foi interessada por tecnologia ou esta vocação surgiu posteriormente em sua vida?
Patrícia Florissi: “Vou ser sincera… Cresci nos anos setenta e a computação não existia como profissão. Por ser filha única, meus pais se preocupavam desde cedo com o que eu iria seguir profissionalmente. E nessa época, minha mãe acreditava que eu era boa em matemática. Acontece que, aos 12 anos, ao me levar num teste vocacional, a profissional lhe disse que eu era mediana com exatas, o que a deixou horrorizada. Não sendo boa com números, e não pretendendo fazer engenharia ou medicina, não restariam profissões para mim. Acontece que, logo depois, a psicóloga afirmou que eu era fora da curva em lógica.
Animada, minha mãe a questionou sobre o que alguém excepcional em lógica poderia fazer, e a moça não sabia a resposta. Aí imagina… Minha mãe saiu daquela reunião arrasada, pois, até então, eu seria uma pessoa sem futuro. Eu tinha nove anos. E aí, dos meus nove aos dezesseis, ela passou a perguntar para qualquer um que encontrasse, em quaisquer ocasiões, o que uma pessoa boa em lógica poderia fazer.
Eis que um dia, o filho de um colega dela lhe deu a tão desejada resposta. Ele disse: ‘Esse ano, a Universidade Federal de Pernambuco vai ter um curso de computação, que é a profissão do futuro’. E foi assim que eu acabei nessa área. Eu nem sabia o que era computação, mas eu não queria desobedecer minha mãe.”
CLAUDIA: Essa expectativa em relação ao seu futuro profissional que você experimentou desde os nove anos lhe afetou de alguma forma?
Patrícia Florissi: Acho que isso foi crucial para a minha formação. Há várias maneiras possíveis de reagir a um cenário como este. Sentir-se pressionado é uma delas. Mas, ao meu ver, isso me trouxe clareza, objetividade e foco, que são características que nos levam a distâncias inimagináveis. Eu nunca fiquei em dúvida entre trabalhar ou ser dona de casa, ou entre frequentar a faculdade ou permanecer sem estudos. Meus pais eram mais velhos, eu não tenho irmãos, então eu apenas sabia que precisava ter responsabilidade e criar mecanismos naturais para lidar com as obrigações da vida. Sei que nem todos são iguais, mas esta é a minha experiência.
CLAUDIA: E como foi o processo de se tornar uma das primeiras pessoas a aprender a programar um computador pessoal no Brasil?
Patrícia Florissi: Comecei a universidade em 1984, e quando a turma chegou, só tínhamos o mainframe [computador de grande porte destinado a processar um grande volume de informações]. E aí, o professor, numa aula de algoritmo, compartilhou uma novidade: nós finalmente teríamos um PC [personal computer, ou em tradução literal, computador pessoal]. Eu nem sabia o que era aquilo. Porém, ele disse que faria uma prova, e os três alunos que tirassem as maiores notas poderiam ter acesso ao dispositivo. Um deles acabou sendo o meu atual marido. Então, aprendemos linguagem de programação, e começamos a ficar super capacitados em algo que, até então, ainda não tinha mercado.
CLAUDIA: E falando em mercado, como foi a sua iniciação profissional nesta área após tantos anos de estudo? Em que momento o Google Cloud entrou em cena?
Patrícia Florissi: Quando eu estava na graduação com o meu marido, decidimos buscar uma educação no exterior, pois o Brasil era extremamente fechado. Para você ter uma noção: o livro de programação que estudávamos na universidade tinha quinhentas páginas, escritas em inglês e precisou ser contrabandeado pelo meu professor, pois ninguém poderia ter livros naqueles tempos. Nós tínhamos a chave da sala dele, pegávamos o livro num local secreto, corríamos para uma outra salinha, nos trancávamos e líamos em três pessoas.
Então, quem quisesse realmente aprender, precisava estudar fora. Fomos aceitos na Universidade Columbia (NY), e em nosso PhD, tivemos que fazer exames de qualificação em áreas como rede, software, hardware e inteligência artificial. A gente nem sabia o que era IA. Então, pegamos todos os livros da biblioteca, a ponto de formar uma montanha que batia na minha cintura, e cada um leu metade do monte. Aprendemos sozinhos em 1989, há 33 anos.
Depois, voltamos para o Brasil, tivemos duas filhas, e retornamos aos Estados Unidos para trabalhar numa startup de tecnologia criada pelo meu orientador da Columbia. Posteriormente, entrei para o Google Cloud [em 2020].
CLAUDIA: Como você diferenciaria a cultura profissional americana da brasileira? Como foi se adaptar a novos hábitos e costumes?
Patrícia Florissi: Eu sinto que a maior diferença é o ambiente altamente competitivo. Você sente uma enorme peer pressure. Sempre há alguém falando sobre uma tecnologia desconhecida, sobre uma especialização numa área que não temos tempo para estudar. Então existe muita pressão. Mas por outro lado, as regras são bem claras, num sentido em que sabemos claramente como seremos medidos e avaliados.
CLAUDIA: Como você descreveria o seu cargo e funções no Google Cloud?
Patrícia Florissi: Sou uma diretora de tecnologia dentro do CTO da Google Cloud. Tenho basicamente duas funções: uma delas é trabalhar conjuntamente com nossos maiores clientes, os ajudando a solucionar problemas de negócios complexos através da tecnologia. A partir daí, entramos em nossa segunda tarefa: escutar ativamente as necessidades das companhias, para depois, criar soluções avançadas que estejam cada vez mais conectadas com as trends tecnológicas emergentes.
Estamos constantemente analisando o que está acontecendo nesta área e trazendo esses insights. Sempre estou pensando em tecnologias que existam ou que eu possa criar (ou ajudar a criar) para resolver o problema de uma maneira que traga benefícios para além dos ganhos imediatos.
No caso dos grandes varejistas que atendemos, podemos prever os eventos que ocorrerão em seus estoques e agir em cima deles para corrigi-los. Na área da saúde, podemos coletar e analisar dados privados de pacientes de forma segura. E para a indústria automobilística, conseguimos coletar os dados telemétricos dos veículos a fim de prever quando serão as próximas manutenções.
CLAUDIA: Quais são as maiores alegrias e desafios em ser uma mulher na área da tecnologia?
Patrícia Florissi: A maior alegria é o privilégio de ter outras pessoas olhando para mim e pensando: ‘se ela conseguiu, eu posso também’. É tudo o que eu peço da história. Já o principal desafio é o dia a dia, porque a vida é uma sequência de eventos, alguns muito difíceis, outros muito bons. Mas somos testadas principalmente nestes momentos difíceis. E quando eles se tornam frequentes, a coisa fica complexa. Então, enquanto sociedade e time de trabalho, deveríamos nos perguntar diariamente: ‘Em que momento essa pessoa está? Ela está vivendo coisas boas, medianas ou ruins? Será que há algo que eu possa fazer para dar um espaço nesta sequência de eventos?’. Quando somos tratadas sem equidade, somos afetadas. Mas a pessoa que nos afetou nem sequer percebeu.
CLAUDIA: Qual é a sua relação com a luta pela equidade de gênero na tecnologia e quais pontos são primordiais para reverter o cenário de desigualdade?
Patrícia Florissi: Para mim, a falta de representatividade é um dos desafios centrais das mulheres na área da tecnologia. Por questões históricas, continuamos a presenciar uma predominância masculina neste ramo. Atualmente temos mais presença neste mercado? Sim. Mas são necessárias gerações para conquistarmos toda a educação que nos foi negada, e assim, conseguirmos ter o conhecimento essencial para alcançar mais oportunidades altamente qualificadas.
Além disso, pense na representação midiática de pessoas que trabalham com tecnologia. Sempre são homens. E não é qualquer homem: ele é sempre um sujeito que precisou abandonar tudo e todos para seguir este caminho, alguém que se dedica em tempo integral para desbravar os segredos tecnológicos. Tudo isso vai tornando a coisa cada vez mais inatingível.
Por isso, quando eu vou dar palestras sobre a participação feminina na área, eu faço questão de não ser introduzida como doutora. Não gosto que revelem se tenho PhD e mestrado. Quanto mais títulos colocam atrás do meu nome, menos tangível eu me torno para as meninas e jovens que me assistem. Elas acabam achando que, para estar em minha posição, precisarão passar por esforços inimagináveis. Isso as faz desistir antes mesmo de começar. Há uma distância imensa entre as pessoas das quais falamos na tecnologia e o cidadão comum, e tento ao máximo combater isso.