Primeira conselheira negra na área do petróleo revela desafios da carreira
Ainda na faculdade, Cristina Pinho descobriu as barreiras que enfrentaria em sua jornada. Desde então, trabalha para abrir espaço para outras como ela
Ser boa esposa, boa mãe e prendada. Se seguisse a vontade de seus pais, esses seriam os maiores propósitos da carioca Cristina Pinho. Nascida em uma família de classe média na Zona Norte do Rio de Janeiro, já na infância ela começou a ser preparada para atender as expectativas depositadas sobre as mulheres na época.
Aluna em um colégio de freiras, aprendeu francês, piano e balé, como ditava o manual das boas práticas. Uma jovem como ela deveria ser culta e habilidosa com artes – desde que fosse apenas para entreter. O que o código ou os pais de Cristina não previam é que seria na área de exatas que ela encontraria sua vocação.
Afeiçoada aos números e fórmulas físico-químicas, na adolescência ela decidiu que queria estudar engenharia, em parte influenciada por um desejo do pai, funcionário público formado em direito que sempre quis ser engenheiro. “Inicialmente pensei na área florestal, depois na civil. Finalmente, escolhi a mecânica, pois acreditei que a especialidade seria a mais flexível e abriria muitas portas para operar em áreas diferentes”, explica. Os pais, claro, ficaram surpresos, mas a apoiaram. Como Cristina logo descobriria, a grande resistência à sua trajetória viria não de dentro, mas do mundo exterior.
Uma das seis mulheres que compunham a turma de noventa alunos da Universidade de Brasília, ela conta que a graduação foi marcada por constantes atitudes grosseiras dos colegas homens, que faziam questão de tentar manter uma dominação na classe através de piadas inconvenientes. E não eram os únicos.
Durante uma entrevista de transferência para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, Cristina foi questionada por um professor sobre o que fazia ali. Ao responder que estava se inscrevendo para as disciplinas de engenharia, ouviu do docente: “Mas seu lugar não é atrás do fogão?”. “Acho que nós representávamos alguma ameaça para eles. Eu percebia as coisas, mas não me deixava abater. Ao mesmo tempo, não deixava que pensassem que eu achava aquilo engraçado.”
Já graduada, seguiu o conselho de prestar concurso para ter um emprego estável, como tantos outros jovens de sua geração. Na época, as duas grandes opções eram o Banco do Brasil e a Petrobrás. Por afinidade de formação, preferiu a segunda. Nos estaleiros e em outros ambientes profissionais onde a presença masculina era majoritária, os comentários impróprios disfarçados de brincadeiras seguiram presentes.
De elogios excessivos à sua aparência, passando por apropriação de ideias e frequentes gestos e toques inapropriados, esse tipo de comportamento era tolerado pela gerência – mesmo incomodando as mulheres. “Era um ambiente machista. Em casos de atitudes muito inadequadas, fazíamos denúncias, que depois seriam apuradas. Mas, no início, as punições eram levíssimas.”
Além do assédio, Cristina e suas colegas precisavam trabalhar dobrado para derrubar as barreiras que impediam a ascensão profissional. “Precisávamos ter uma presença que chamasse atenção, demonstrar segurança até no tom de voz. Se uma mulher tivesse uma voz muito suave, não falasse alto o suficiente, normalmente ela nem sequer era ouvida. E, de imediato, se presumia que ela era fraca, não sabia se posicionar e não servia para ser chefe”, conta.
“O mundo está mudando para melhor e as empresas que não perceberem isso ficarão para trás”
Não se trata de um cenário particular do Brasil, como reportou um estudo feito em 2019 pela consultoria empresarial McKinsey. Avaliando dados de 250 companhias norte-americanas, a pesquisa verificou que as mulheres representam apenas um terço dos funcionários nos níveis básicos da indústria petrolífera, parcela que se reduz para cerca de 10% quando se trata dos postos mais altos da hierarquia profissional.
Segundo o relatório, o principal obstáculo ao avanço feminino no setor é a dificuldade em conseguir a primeira promoção para uma posição de gerência. Como aponta a pesquisa, uma possível explicação para isso é a de que muitas mulheres deixam de aceitar oportunidades em localidades remotas no começo de suas carreiras, o que acaba tolhendo suas chances de serem promovidas mais tarde.
Esta hipótese, contudo, parece apenas reforçar a narrativa enraizada na indústria de que elas são menos flexíveis que seus colegas do gênero masculino, ideia que já foi contestada por outros estudos anteriores, como o Untapped Reserves: Promoting Gender Balance in Oil and Gas, de 2017. Realizada pelo World Petroleum Council e o Boston Consulting Group, essa análise verificou que 36% das mulheres da área estavam mais dispostas a aceitar trabalhar em outro país contra 28% dos homens, sobretudo quando mais jovens.
Ser promovida tampouco põe fim aos entraves experimentados pelas mulheres no setor de óleo e gás. Nos anos 1990, atuando como gerente de operações, Cristina passava dias em plataformas offshore que não possuíam a infraestrutura necessária para atender as necessidades dela e de outras funcionárias.
Em certa ocasião, pouco após retornar de uma licença-maternidade de quatro meses e ainda amamentando, ela embarcou por um período de cinco dias. Além de deixar uma grande quantidade de leite para a filha em casa, a engenheira também teve que se virar para lidar com o que era produzido durante o período que esteve no mar. “Precisava tirar leite no banheiro da plataforma, era horrível. E não havia banheiro ou camarote feminino, era necessário dividir com os colegas. Só a partir de 1995 é que se iniciaram grandes mudanças, pois começaram a ter mais mulheres a bordo.”
Abrindo caminhos
Apesar de ter se aposentado em 2018, Cristina não parou. Primeiro, se matriculou em um curso de governança corporativa, motivada pela ambição de se tornar conselheira de administração. Um ano depois, foi convidada para trabalhar no Instituto Brasileiro do Petróleo, onde segue atuando como diretora executiva corporativa e ajudou a criar um comitê de diversidade.
A ideia surgiu em uma conversa com amigas do setor, que estavam cansadas de contar suas histórias de ascensão em painéis femininos de eventos e não ver nenhuma mudança concreta acontecer na indústria. Hoje, a principal ação desse comitê é um programa de mentoria para auxiliar jovens gerentes mulheres a avançar em suas carreiras. “É uma iniciativa de mão dupla, pois as ajuda a enxergarem suas barreiras e fortalezas pessoais e, ao mesmo tempo, mostra para as empresas o que elas precisam mudar em seus ambientes”, explica Cristina, que é vice-coordenadora do programa.
Em agosto passado, ela foi nomeada conselheira independente da Ocyan, tornando-se assim uma das primeiras mulheres negras a ocupar tal posto em um conselho de administração no país. Lá, seu trabalho é oferecer pareceres sobre as estratégias que podem impactar o futuro da empresa e, justamente por isso, está engajada em auxiliar nas ações de fomento à diversidade racial nos cargos mais altos da companhia.
“Já existe há alguns anos um trabalho para aumentar o número de mulheres, com bons resultados. Agora começamos a conversar sobre intensificar a atração de jovens racialmente diversos para serem futuros líderes. O mundo está mudando para melhor e as empresas que não perceberem isso ficarão para trás. Como disse Luiza Helena Trajano, há um antes e um depois de George Floyd”, afirma.
Mas, como ela mesma frisa, ainda há muito chão pela frente. De acordo com o Índice de Inclusão Racial Empresarial lançado em 2020 pela Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, apenas 4,9% das cadeiras nos conselhos de administração e 6,3% dos cargos de gerência são ocupadas por negros.
Somente nas categorias de aprendizes e trainees é que essa parcela da população representa uma maioria, totalizando 57% e 58%, respectivamente. “Temos que forçar para que os CEOs enxerguem as pessoas que não são brancas em suas empresas, do contrário isso não acontece. O racismo estrutural não ocorre em forma de piada ou coisa parecida, mas sim quando não se dá a chance para as pessoas subirem.”
No meio de tudo isso, Cristina ainda encontra tempo para administrar ao lado do marido o Instituto Luísa Pinho Sartori (ILPS), uma homenagem à filha Luísa, estudante de biologia que faleceu em 2009. O amor da jovem pela natureza inspirou a criação do projeto, que, por meio de prêmios e ajuda financeira, visa apoiar jovens conservacionistas a perseverar em seus trabalhos e estudos para a proteção do meio ambiente.
Sobre o contraste da iniciativa com a imagem pouco sustentável do setor de óleo e gás, Cristina responde que essa é uma percepção que a indústria ainda precisa trabalhar muito para mudar. “A produção de petróleo em toda a sua cadeia é e será cada vez mais eco-friendly, pois a sociedade não tolera mais aquilo que não contribui para a sustentabilidade do planeta. E minha atividade no ILPS está completamente inserida nesse contexto.”
Aos 62 anos, Cristina olha para trás e recorda com admiração todas as mulheres que a inspiraram em sua trajetória até aqui e que, como ela, alcançaram o topo de suas carreiras apesar de todos os percalços. Sendo ela própria uma referência para tantas jovens que pretendem trabalhar na área petrolífera, seu desejo não poderia ser diferente: que venham muitas outras.