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O que considerar na hora de abrir o relacionamento?

Novas configurações de relacionamento podem reproduzir velhos padrões

Por Caroline Apple
2 abr 2023, 08h28
A não monogamia é a negação da monogamia, o padrão hegemônico que prega exclusividade afetiva e sexual entre duas pessoas.
A não monogamia é a negação da monogamia, o padrão hegemônico que prega exclusividade afetiva e sexual entre duas pessoas (Ilustração: Julia Jabur/CLAUDIA)
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Os pactos sociais sobre as formas de se relacionar parecem não estar mais fazendo sentido para muitas mulheresA relação aberta e a não-monogamia começaram a ser consideradas e experimentadas.

Mas, como todo processo de desconstrução, há desafios e armadilhas pelo caminho, que podem transformar essas tentativas de buscar a felicidade em novos modelos de relacionamento em maneiras diferentes de gerar sofrimento e reproduzir padrões.

Será que dá certo abrir a relação para “salvar” o casamento? Será que vale a pena tentar amenizar a frustração de não conseguir viver o formato de relacionamento que deseja se aventurando em novos modelos? Será que fixar a ideia de que o “amor livre” é forma mais moderna de se relacionar e, por isso, deve ser praticada, é algo realmente positivo? Será que vale a pena entrar na onda do parceiro por medo de ficar sozinha?

Outro ponto para além das justificativas dessa busca, é a questão dos grupos sociais aos quais pertencem as mulheres que decidem viver um relacionamento aberto e a não-monogamia, que pode impactar diretamente no resultado da experiência.

Por ser um tema cheio de subjetividades que passam por questões profundas em diversas esferas sociais e humanas, CLAUDIA traz para compor esse debate a opinião da psicanalista Maria Homem, da indígena psicóloga não-binária Geni Núñez, da socióloga e escritora preta Fabiane Albuquerque e da pessoa artista transexual não-binária Aruãn.

Veja o que essas mulheres e pessoas pensam através de seus estudos e experiências pessoais e inspire-se para tomar decisões que te realizem, independente da sua escolha.

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É preciso considerar o que a mulher quer saber de si e do outro”

A psicanalista Maria Homem
A psicanalista Maria Homem (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)
  • Maria Homem, psicanalista

Somos seres erotizados e com uma busca de compreender a nós mesmos e nossos corpos, gozos, desejos e fantasias. Todos nós, para além da lógica binária, estamos procurando abrir a mente e assim “abrir” os pactos. Os motivos são diferentes, mas a busca é comum: interrogar quem somos, o que desejamos e como gozamos.

Se a busca for de ampliar os processos de conhecimento e vivência do próprio erotismo e, eventualmente, de transformação, todos podemos usufruir de maior abertura. Mas, na prática, o que se verifica, é que a chamada relação aberta é só uma forma de repetir as estruturas patriarcais clássicas em que o homem transa livre e monotonamente do mesmo jeito com uma série de mulheres disponíveis, como sempre fez, mas agora sem esconder, e a mulher fica com a impressão de que está sendo traída e excluída de um pacto de parceria e afeto. 

“A abertura do relacionamento pode atravessar várias camadas, sejam elas concretas ou de partilha de fantasias.”

Maria Homem, psicanalista

A rigor, nunca somos seres monogâmicos. Por exemplo, às vezes, a fantasia que estrutura um gozo feminino é se imaginar sendo a ‘outra’ ou imaginar que o parceiro tem uma amante, e o tesão ocorre justamente quando ela vai montando essa cena enquanto faz sexo com o parceiro. Complexo, não?

A boa ideia é sempre estar em seu próprio eixo e numa relação de confiança para explorar ao máximo seus desejos e fantasias e, de preferência, no interior de uma relação de cumplicidade máxima.

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É preciso considerar o que a mulher quer saber de si e do outro nessa grande saga que é de fato o conhecimento do mais profundo de nós mesmos e de nossas pulsões, fantasias, sensibilidades e nossos desejos.

“Descentralizar as decisões da vida dos homens é sempre uma boa pista”

A psicóloga Geni Núñez
A psicóloga Geni Núñez (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)
  • Geni Núñez, indígena psicóloga não-binária

Na minha prática como psicóloga e professora em formações sobre esses temas, percebo que muitos dos homens que sugerem relação aberta a suas companheiras, no geral, parecem buscar uma forma de ampliar o exercício de sua própria sexualidade. Não que isso seja um problema, mas, infelizmente, vejo pouco debate dos homens héteros (monogâmicos ou não) sobre redistribuição de trabalho doméstico, cuidado das crianças, saúde emocional e etc. 

Já escutei de muitas mulheres héteros o relato de que haviam descoberto que seus parceiros as haviam “traído” e, diante disso, propunham a eles que abrissem a relação para que elas também tivessem direito à mesma liberdade. Até hoje, 99% delas tiveram uma negativa de seus companheiros.

“A monogamia segue sendo um lugar em que homens têm liberdade sexual, mas impedem que suas companheiras tenham o mesmo direito.”

Geni Núñez, indígena psicóloga não-binária

Tudo na vida a gente deve decidir por algo que faça sentido para nós, porque aquilo nos interessa, nos inspira. Fazer algo “pelo outro” é a mesma lógica do sacrifício do amor romântico. Dificilmente termina bem algo que já começa com essa dívida. Muitas mulheres passam a vida toda sem colocar a si mesmas no centro de sua própria afetividade/sexualidade, então é muito poderoso quando a gente consegue tirar o homem do centro das decisões e passa a pensar e sentir a partir de si mesma.

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Descentralizar as decisões da vida dos homens é sempre uma boa pista para fortalecimento e autoestima. Nisso, é importante a gente lembrar: limites e decisões a gente pode ter apenas sobre o próprio corpo, nunca pelo corpo do outro. Não se terceiriza a autonomia sobre isso.

Percebo que, no senso comum, há uma obsessão em torno do sexo, então tudo que tem a ver com monogamia ou não monogamia rapidamente é preenchido por fantasias sobre “vantagens e benefícios” sexuais, mas é importante que o debate vá além disso.

“Mulheres pobres e negras são as que menos colocam esta pauta”

A socióloga e escritora Fabiane Albuquerque
A socióloga e escritora Fabiane Albuquerque (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)
  • Fabiane Albuquerque, socióloga e escritora

Precisamos lembrar que não existe mulher no universal, nem homem. Eu posso falar que mulheres brancas e burguesas têm um jeito de se relacionar diferente de mulheres negras periféricas, por exemplo.

As mulheres burguesas e brancas, que estão dentro dos padrões, podem aproveitar melhor a liberdade sexual. Mas, na base da pirâmide, vemos mulheres sobrecarregadas, tendo que cuidar de si mesmas, dos filhos e até de outros membros da família. Conheço casais abertos, mas todos da classe média.

“Mulheres pobres e negras são as que menos colocam esta pauta, e isto diz muito sobre a distribuição de afetos e do que chamamos de liberdade.”

Fabiane Albuquerque, socióloga e escritora
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Uma das minhas melhores amigas, uma negra retinta, de 48 anos e bem-sucedida na carreira está namorando “sério” pela primeira vez na vida. Ela me contou estar se sentindo uma adolescente, pois saia de mãos dadas, fazia compras juntos e até ganhou um anel de compromisso. Choramos pelo telefone.

Vendo de fora, mulheres brancas feministas diriam: “Nossa! Ainda estão nessa de amor romântico?”. Eu respondo: “Ainda estamos nessa de ter um relacionamento. Vocês estão discutindo todos estes termos e nós, mulheres pretas, estamos discutindo nos relacionarmos com alguém.” Nós, mulheres negras, estamos tentando sair da condição de amantes.

Caso a mulher queira ter uma relação aberta, ela deve considerar as suas necessidades, os seus desejos e a sua dignidade. É mesmo o que ela quer? Ela está aceitando para não parecer moralista? Ela quer mesmo experimentar uma relação, sem expectativas e compromissos com alguém? Se é isto que ela quer, sem grilos, que vá com leveza. 

Quando um homem que ama, cuida e dedica a vida a outra mulher me propõe uma relação na qual ele não tem nada mais do que atração física e admiração por mim, eu caio fora. Talvez eu não esteja na moda, mas eu nunca estive mesmo. 

“Em nenhuma instância eu diria que abrir um relacionamento é uma boa ideia”

Aruãn é artista transexual não-binária
Aruãn é artista transexual não-binária (Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução)
  • Aruãn, pessoa artista transexual não-binária

Acredito que a maioria das pessoas busca o relacionamento aberto pelo desejo de poder se sentir livre, mesmo estando em uma relação. A questão é que não é a relação que nos aprisiona, é a monogamia. 

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“Digo que, para ser livre, a ‘solução’ não é o relacionamento aberto, mas sim ser anti-monogamia.”

Aruãn, pessoa artista transexual não-binária

Para mim, relacionamento aberto é um nome politicamente correto para não-exclusividade sexual. São casais monogâmicos que querem ter diversidade sexual e, por isso, abrem o relacionamento para poderem beijar, trocar e transar com outras pessoas para além daquele casal.

Diante disso, em nenhuma instância eu diria que “abrir um relacionamento” é uma boa ideia. Porque é tapar o sol com a peneira. É uma resolução temporária para algo que, no mais profundo, tem a ver com uma estrutura que estamos reproduzindo: a monogamia. Eu sou uma pessoa anti-monogamia. E, por isso, não sou a favor do relacionamento aberto.

Para um relacionamento “ser aberto” há de ter um “casal” e esse casal se torna o “casal central”. E aí já se mostra novamente toda uma hierarquia de relações. Estamos todes percebendo que a monogamia não deu certo. Temos histórias e mais histórias de casamentos frustrados para contar. E com tantos casamentos frustrados, é natural que a gente comece olhar para novos caminhos. A questão é que tem caminhos que “parecem novos”, mas seguem repetindo velhos padrões. Por mais que exista uma liberdade sexual, ainda sim ela é individual. E para mim, liberdade real acontece quando é coletiva.

Acredito que o principal ponto que uma pessoa deve considerar antes de experienciar qualquer tipo de relacionamento é se perguntar com verdade o porquê e por quem esse movimento está sendo feito. Se é por uma vontade autêntica e verdadeira ou se por necessidade de aceitação social. 

E se a vontade for se abrir para escolher novas formas de se relacionar com as pessoas, eu diria que o primeiro passo para vivenciar essa experiência de maneira saudável é se perguntar se a pessoa tem consciência dos seus próprios limites e disponibilidades dentro de uma relação. Limite é borda segura para o amor transbordar.

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