Você vive um relacionamento tóxico? Saiba como reconhecer!
No amor ou na amizade, críticas maldosas são tão nocivas quanto maus-tratos. Reconhecer a violência e avaliar a hora de cair fora poupará dores maiores
Quando Isadora*, 31 anos, personal stylist de Ribeirão Preto (SP), estava no último ano do colégio, sempre se entristecia com comentários de uma amiga. “Não só ela mas também sua família faziam piadas de mau gosto sobre minha aparência. Como tenho pele morena, a mãe dela adorava me apontar falando: ‘Olha a mucama da minha filha!’.”
Hoje, o caso seria denunciado em uma delegacia como racismo. Mas, na época, Isadora era uma menina e apenas reclamava. “Minha amiga dizia que eu era exagerada, sensível demais ou simplesmente uma chata”, lembra.
“Crescemos e ela continuou com as críticas. Tinha necessidade de pegar nos meus pontos fracos”, conta. “Repetia que ninguém gostava de mim, que não sabia como meu namorado, tão legal, podia me aguentar. Ia feliz encontrá-la e voltava mal.”
Para o terapeuta Akim Rohula Neto, de Curitiba, autor do livro Terapia em Gotas (Arte & Letra), tentar diminuir o outro é uma atitude comum nas chamadas relações tóxicas, sejam elas entre amigos, parentes ou parceiros amorosos. Se um tende a desprezar o outro ou não fica feliz com as conquistas daquela pessoa, é claro que isso será danoso.
Além da ridicularização e do desdém, podem ocorrer mentiras, ofensas e manipulações. Em situações mais agudas, o desrespeito se amplifica e chega à violência física. Por isso, os especialistas entrevistados concordam em admitir “graus de toxicidade”.
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Os relacionamentos abusivos e os que envolvem pessoas com transtornos graves estariam no extremo de práticas muito turbulentas. No meio do espectro, encontram-se as relações que, se trabalhadas, tendem a se tornar mais harmoniosas.
“Pensar: ‘Não gosto de quem sou quando estou com aquela pessoa’ indica que o relacionamento é tóxico em algum grau”, alerta a psicóloga Joana Singer, de São Paulo.
Há casais formados por agressores e agredidos em uma dinâmica em que os papéis se alternam. Em casos assim, psicanalista João Felipe Domiciano, da capital paulista, considera a convivência como bitóxica. “Já atendi pacientes com casamentos assim”, afirma.
“O mais frequente, porém, é que uma parte seja ativa na ofensa e a outra na passividade, sofrendo sempre as ações opressivas. A segunda é a que vem ao consultório.”
A pessoa que se sente machucada deve se fazer as perguntas: “Por que decidi seguir nesta relação que me faz mal? O que busco aqui? É possível ancorar a troca em bases mais harmoniosas? Posso melhorar o relacionamento reduzindo o contato ou a única saída é a separação?”.
ANÁLISE DIFÍCIL
Antes de classificarmos uma relação como tóxica, vale lembrar que qualquer interação entre duas pessoas é complexa. Nenhuma será equilibrada o tempo todo nem envolverá seres humanos sempre sensatos.
“O importante é recorrer ao chamado estoque emocional”, recomenda Rohula Neto. “Observe se é positivo pensar no parceiro ou parceira. Se você tem carinho, sente-se bem na sua presença. Quando isso provoca tensão, há um problema. Pode ser algo pontual ou mais enraizado.”
Domiciano concorda. Para ele, a presença do sofrimento sinaliza que o processo é tóxico. Mas pesam também as questões de individualismo e intolerância. Domiciano defende a necessidade de uma autoanálise para investigar se a relação carrega características abusivas ou se é você que não aceita quando o outro não corresponde às suas expectativas.
“Hoje, a sociedade perdeu a noção de como conviver sem ser à base da violência”, pontua. “É como se não fosse mais possível encontrar diferenças que construam. O ideal seria aprender a lidar melhor com elas.”
Nem sempre é fácil determinar se vale conversar sobre as atitudes da pessoa ou se é o caso de enxergar que se deve ser mais compreensiva. Isso pode ser uma armadilha também. Alguém que vem se machucando com as atitudes do parceiro pode acabar se culpando pelas crises, como se fosse inteiramente responsável pelo modo como as coisas têm funcionado.
Foi preciso se sentir desrespeitada muitas vezes para que Julia Metzker, estilista mineira, 24 anos, percebesse que seu namoro não lhe fazia bem. “Sem trabalhar e sem estudar, o cara não me apoiava profissionalmente e ficava incomodado com minhas conquistas, da formatura aos empregos e oportunidades”, conta ela.
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“Qualquer coisa que significasse um reconhecimento ou crescimento o ofendia”, relata. “Acreditava que ele era uma pessoa calma e evoluída, enquanto eu era a nervosa e a doida do casal”, lembra Julia, que permaneceu no relacionamento por seis anos.
Quando a família e os amigos já não disfarçavam suas objeções ao companheiro, ela passou a notar os aspectos que a incomodavam no comportamento dele e começou a cobrar mudanças. “Mas isso só aumentou o desgaste, pois ele não se punha no meu lugar e se vitimizava dizendo que eu não me importava com ele. Terminei, e foi a melhor coisa que fiz. Depois disso, minha vida andou.”
Pegar para si a responsabilidade de zelar pela paz a dois não resolve. Responsabilizar o outro por todas as mazelas, também não. “É preciso avaliar não os papéis de vilão e mocinho, mas a dinâmica”, diz Rohula Neto.
“O abusador provavelmente age assim por já ter sido abusado, mas suas dores não podem justificar suas atitudes.” Já o abusado, lembra ele, deve entender que tipo de interação exerce na dupla e como alimenta o comportamento negativo do parceiro. Assim, não repetirá o processo com outra pessoa. O começo da mudança, reforça Rohula Neto, é pela autoavaliação.
Na visão de Singer, a toxicidade independe de quem seja o culpado ou a vítima. “Se a convivência faz mal a você, prejudica sua capacidade de sentir prazer e de mostrar o que tem de melhor e vem abalando sua saúde, é preciso refletir sobre si mesma. E não apontar os erros alheios.” O foco recai sobre você.
Para quem está de fora, pode parecer incompreensível que a pessoa esteja sofrendo e suportando o desrespeito por anos. Relacionamentos envolvem afetos. Além do amor, pode haver dependência emocional ou mesmo material, entre outras possibilidades.
“Há componentes das relações humanas que não conseguimos descrever completamente. Por uma série de fatores conscientes e inconscientes, se permanece naquela situação dolorosa”, pondera Domiciano. Assim, é melhor que a palavra culpa se mantenha longe.
Mais produtivo é avaliar o percurso que a levou até ali e o que é possível fazer para crescer. Serve de alento saber que nem sempre o rompimento se faz necessário. Para os especialistas, a toxicidade pode se transformar em algo saudável.
DAQUI VOCÊ NÃO PASSA
A primeira medida se dá estabelecendo limites. “É preciso encontrar o ponto certo para o outro e para você, fazer acordos e, o principal, observar se a pessoa se importa com isso”, afirma a psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa Silva, autora de best-sellers como Mentes Perigosas e Corações Descontrolados (Fontanar).
“Tem de ser honesta consigo mesma e analisar se o outro manifesta arrependimento sincero, opera mudanças reais de atitude e demonstra sensibilidade para com seus sentimentos.”
Conhecida por falar sobre a psicopatia, Silva frisa a importância do remorso. “De modo simplificado, o psicopata é aquele que não se arrepende nunca dos seus atos. Se há remorso, existe tratamento”, resume.
Mas nossa sociedade, segundo a psiquiatra, estimula tão fortemente a indiferença que algumas pessoas, mesmo não sendo genuinamente psicopatas, acabam apresentando alterações cerebrais características desse transtorno. Nesses casos, não existe esperança de mudança de comportamento.
Porém, se parece possível virar o jogo, deixe claro até onde você pode participar dele. “É como se dissesse: ‘Amo você, mas não amo isso que está fazendo’ ”, explica Singer.
“No caso de filhos que não respeitam os pais, por exemplo, é fundamental oferecer a eles segurança e suporte, mas também dizer ‘disso eu não gosto’ ou ‘aquilo eu não admito’. Isso só se dá quando os pais têm muito claro o que aceitam ou não toleram.”
O mesmo vale para todas as outras relações. E, em todas elas, mudar passa por autoconhecimento. Você identifica as ações que a machucam e não vai mais permitir que elas se repitam. Que “brincadeiras” você não quer mais tolerar? Se o outro estiver, de alguma forma, comprometido com a saúde da relação, a tendência é que, com os limites, a frequência dos comentários ofensivos e das agressões decline.
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DENTRO DO POSSÍVEL
Diminuir o contato costuma ser uma alternativa interessante em alguns tipos de relação. “Uma coisa é o bom relacionamento; a outra, a proximidade”, lembra Rohula Neto. “Às vezes, a pessoa se sente culpada por promover a distância, como se isso significasse que não ama o outro, mas é importante trabalhar essa questão”, aconselha.
“Quem tem pais tóxicos, por exemplo, muitas vezes vive uma relação mais saudável quando diminui as visitas e dá telefonemas mais breves.” Foi a saída encontrada pela maquiadora carioca Letícia*, 27 anos, que passou a ver menos a mãe para tornar os encontros minimamente agradáveis.
“Ela sempre foi muito crítica comigo, e isso teve tudo a ver com os problemas, como depressão e transtorno alimentar, que desenvolvi”, diz. Letícia conta que a mãe nunca apoia suas escolhas, como a profissão, e as duas brigam pelos mais variados motivos.
“Ela tem as dificuldades dela e não acho que seja uma pessoa tóxica. Sem dúvida, porém, nossa relação é. Hoje, ao perceber que estar com ela desperta em mim sentimentos ruins, consigo me afastar um pouco sem sentimento de culpa.”
Isadora, a personal stylist do início da reportagem, fez escolha semelhante na convivência com a amiga. Apesar dos problemas, ela ainda aproveita momentos agradáveis com a turma em comum. “Não saio mais só com ela, mas em grupo.”
Também ajuda questionar se, naquela relação, determinados tópicos devem ser evitados. “Por exemplo, se o filho se estressa há 30 anos com o mesmo comentário dos pais, por que insistir naquela conversa? Se a sua mãe é do tipo que condena quando você leva alguma novidade, por que correr para falar sobre a promoção no emprego?”, pergunta Domiciano.
“Ou você não conta ou fala sem dar muitos detalhes. Pode ainda fazer um exercício para abstrair as críticas.” Segundo o psicanalista, no entanto, se o outro é abusivo e nem conversas e limites resultaram em indício de mudanças, é preciso decidir se vale mesmo continuar na relação.
Talvez, dentro de cada um que enfrenta a convivência tóxica, haja a esperança de que o outro “acorde” – e a convivência se torne bem próxima, feliz e saudável. Mas é essencial operar com o olho na realidade daquela dupla. E buscar melhorias dentro do que é possível.
*Nomes trocados a pedido das entrevistadas