Memória em tela: a arte sem limitações de Larissa de Souza
Artista visual autodidata, Larissa de Souza abre as portas da sua casa-ateliê onde cria as pinturas que celebram a beleza ancestral do feminino negro
Um teto todo seu onde ela dá vazão à sua arte sem limitações. Essa é uma das maiores alegrias de Larissa de Souza, artista paulistana de 26 anos, que plasma em suas telas a memória de sua ancestralidade, os afetos de sua identidade e as lembranças de cenas que ela gostaria de ter visto enquanto crescia. Mulher preta da Zona Leste de São Paulo, ela viveu a infância numa ocupação e, depois, dividiu uma casa de um cômodo com a mãe e o irmão. Na cabeceira da cama de solteiro, se contorcia para fazer suas pinturas. O primeiro sopro de liberdade criativa veio no início da pandemia, quando se mudou para um apartamento pequeno, onde montou um ateliê. “Mas também ali me faltava espaço.
Tinha que guardar uma pintura num canto para começar outra. Não tinha a oportunidade de conviver com minha arte”, lembra. Depois que suas telas, protagonizadas pelo imaginário do feminino negro, passaram a ter reconhecimento e valor no mercado de arte, ela conquistou muitos espaços. Inclusive a casa onde hoje mora e trabalha: as paredes entre as quais pintou uma tela tão grande que sequer foi capaz de memorizar as dimensões. “Senti que já não estava limitada a nada, principalmente a nenhum formato. Pude chamar esse lugar de lar”, diz.
A arte de Larissa sempre foi intuitiva. Ela, que se define como autodidata (não tem formação acadêmica), sentiu pulsar o desejo de ser artista já na infância, apesar do acesso limitado às artes visuais. “Eu sempre estudei em escolas públicas e não tinha informação de que há pessoas no Brasil que trabalham e vivem de pintura. Meu primeiro contato com a arte foi através da música. Na ocupação, convivia com pessoas de diversas regiões do país e cada uma trazia um pouco da sua cultura na musicalidade”, lembra. Foi assim que conheceu o hip hop e, graças a ele, descobriu o grafite. “Quando ia passear no centro da cidade com a minha mãe e avó, e me deparava com eles nos muros e prédios, pensava: ‘É isso que eu quero fazer’.” No entanto, o receio de ser criminalizada ao pintar um muro alheio levou-a, de certa forma, às telas.
Foi só quando realizou sua primeira exposição individual, Pertencimento, que Larissa se deu conta do simbolismo e do quanto de sua subjetividade ela coloca em cada movimento do pincel. “Meu tema mais recorrente é a feminilidade na figura da mulher negra. Porém só tenho essa resposta porque um colega comentou sobre a ausência de masculinidades no meu trabalho. Aí entendi que, dentro da minha casa, não havia uma figura paterna e, fora dela, meu entorno era constituído de mulheres pretas”, conta. Quando puxou a ponta do fio da memória, Larissa percebeu que não havia volta atrás. A busca da ancestralidade, da identidade através dessa memória, é a essência (e a potência) da sua arte.
“Minha arte é uma extensão de mim, e é através dela que tenho resgatado essa autoestima, principalmente quando vejo mulheres que se sentem representadas por minhas pinturas”
Os tons pastel que contrastam com a pele escura de suas protagonistas vêm das cores que ela observava e fotografava em prédios, janelas e ruínas urbanas quando saía para passear no centro de São Paulo. “As conversas de pessoas desconhecidas que ouço de forma muito despretensiosa por aí também acionam gatilhos na minha memória e me despertam o interesse em retratá-las. A rua me inspira muito”, ressalta.
As cenas de trocas de afeto, maternidade e miudezas do cotidiano são o que ela viu ou gostaria de ter visto em sua realidade de mulher e artista afro-brasileira. “As pessoas acreditam que, para seu trabalho ser político, ele precisa retratar violência. Contudo, a minha política é justamente pintar as possibilidades de afeto, esse afeto que afasta mulheres negras e suas vivências dos estereótipos de artistas brancos, principalmente europeus. Trazer outras narrativas é um ato político por si só.”
Larissa diz que seu trabalho também a liberta das estatísticas às quais sua vivência negra e seus caminhos poderiam levá-la. Foi graças à mãe que ela tomou coragem para largar o emprego de vendedora numa loja de materiais artísticos para fazer arte ela própria. “Ela me disse que oportunidade vem só uma vez na vida, então segui seu conselho e, mesmo cheia de inseguranças, fui tentar viver meu sonho.” Passou a criar cada vez mais, também como refúgio da “realidade pesada” do período pandêmico, e começou a divulgar suas telas nas redes sociais, abrindo todos os caminhos. Hoje, já não há telas disponíveis para venda na galeria HOA, que a representa: cada nova obra exposta é quase imediatamente vendida. Além disso, a artista experimenta outras possibilidades do fazer artístico. Quando conversou com CLAUDIA, por exemplo, trabalhava em ilustrações para um livro.
“Tive muitos obstáculos, mas o principal foi ouvir de colegas do universo acadêmico que meu trabalho é mais popular do que artístico, apenas por eu ser autodidata”, lamenta. Para Larissa, como para tantas outras mulheres, a síndrome de impostora e a eventual falta de autoconfiança são, hoje, os maiores desafios. “A minha arte é uma extensão de mim, e é através dela que tenho resgatado essa autoestima, principalmente quando vejo mulheres que se sentem representadas por minhas pinturas”, celebra. Como escreveu em um de seus trabalhos, Larissa se permite se amar. E, ao fazê-lo, propaga em suas telas o afeto ancestral que todas como ela têm o direito de resgatar.