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Conheça a história das garotas que sonham em jogar pela seleção brasileira

Mais do que ter talento, elas precisam superar preconceitos e cavar oportunidades

Por Isabella Marinelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 18 fev 2020, 07h46 - Publicado em 8 jun 2019, 23h45

O sol de outono derramava os últimos raios sobre o gramado do campo do Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP), na Zona Sul de São Paulo, quando um time de técnicos carinhosamente chamava pelo nome as garotas que haviam passado para a segunda fase da peneira de maio do futebol.

Sentadas no chão com as pernas cruzadas, suor escorrendo pelo rosto, elas ansiavam pela convocação. Toda primeira sexta-feira do mês, a história se repete. Mudam apenas os rostos e o clima, mas chega a 150 o número de candidatas.

A entidade, subsidiada pela prefeitura, é considerada o maior celeiro de atletas mulheres do país – ou de toda a América Latina, como os professores voluntários que ali atuam ousam dizer. É lá que grandes times de camisa, como são chamadas as organizações que fazem parte do calendário oficial de primeiro escalão do esporte nacional, colocam os olhos em novos talentos.

FUTEBOL FEMININO
(Filipe Redondo e Marcus Leoni/CLAUDIA)

Os grupos começam no sub-11 e vão, dependendo da temporada, até o sub-15 ou 17, siglas que se referem à idade das jogadoras. Os treinos acontecem em dias alternados, variando de acordo com a categoria. As mais velhas jogam mais e sofrem maiores cobranças. As mais novas, em geral, ainda precisam de técnica, pois poucas têm passagem por escolinhas especializadas – a maioria entra em campo só com um hobby e um sonho.

Já são quase dez anos de projeto, que foi implementado pelo técnico Arthur Elias, hoje no Corinthians, praticamente sem nenhum patrocínio. As alunas devem comprovar que estão matriculadas na escola e ganham vale-transporte para ir e voltar para casa. Antes de assinar a papelada, passam por exame médico e conversam com a assistente social.

Até o fechamento desta reportagem, era a etapa que faltava para Nicole Costa Ferreira da Silva, 10 anos. Ela havia participado da peneira do dia 3 de maio. “Está aqui em casa pulando de alegria”, relatou o pai, Vandré da Silva, pelo telefone.

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As que jogam no COTP comemoram por saber que têm chances de verdade de ser encaminhadas para uma grande equipe. Até o ano passado, o São Paulo Futebol Clube (SPFC) mantinha um convênio com a entidade. Não à toa, este ano a categoria sub-17 joga no Morumbi. Quem passa muito tempo acompanhando a evolução individual de cada uma das garotas desenvolve sensibilidade para entender as lacunas técnicas.

 

 

“Às vezes, quando via que a jogadora já tinha evoluído ao máximo, ligava para alguma equipe e falava: ‘Ela tá pronta; agora precisa jogar’ ”, conta Daniel Santos, ex-preparador de goleiras da equipe. Ele reclama que faltam meninas almejando essa posição: “Todas querem ser artilheiras. Tem que fazer uma matéria sobre isso!”. Considerando a visibilidade alcançada por Marta da Silva e Neymar, faz sentido.

Circulando pelos bastidores da Premier Cup, torneio organizado pela Nike há 28 anos que pela primeira vez inclui times femininos, Daniel aponta as atletas e lembra do nome de cada uma. “A Giovaninha chegou com 9 anos. Uma criança, acredita? Mas era tão boa que foi jogar com as de 13”, comenta, fitando o gramado mais adiante.

“Conheço quase todo esse time do São Paulo. Elas têm muita qualidade, merecem ganhar”, diz, em um quase presságio. Horas depois, a equipe paulistana levaria o troféu. O último jogo, contra as Sereias da Vila – formação feminina do Santos, time da cidade do litoral de São Paulo, onde Marta, eleita seis vezes a melhor do mundo, começou –, foi difícil. Acabou nos pênaltis, com destaque para a goleira Marcelle Freitas Joaquim, que fez defesas de tirar o fôlego.

Em busca de um sonho

FUTEBOL FEMININO
(Filipe Redondo e Marcus Leoni/CLAUDIA)

Quem abraça a colega na foto acima é a zagueira Lauren Leal, 16 anos. Foram três anos de treinos intensos no Centro Olímpico até ir para o São Paulo, onde está há dois anos. Natural de Sorocaba (SP), vinha de carona com a família até a capital todos os dias para treinar – um trajeto de mais de 200 quilômetros ida e volta. A brincadeira com bola começou aos 8 anos.

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O gosto pelo esporte é herança – o pai e o tio jogavam futebol também. A vontade da jovem, somada à paixão familiar, serviu de incentivo para que a matriculassem em uma escolinha de futebol aos 9 anos, onde jogou com meninos por dois anos. Só então foi treinar no Centro Olímpico. “É a melhor base possível, tenho muito orgulho de ter me formado lá”, diz com voz firme enquanto arregaça as mangas da camisa para aliviar o calor.

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Lauren possui mais de quatro anos de experiência na base do futebol feminino (Filipe Redondo e Marcus Leoni/CLAUDIA)

Lauren já jogava na entidade quando o convênio com o SPFC começou, em meados de 2017. Ela foi uma das atletas beneficiadas pela parceria vantajosa. Mesmo tão jovem, já demonstra muita determinação. Sabe bem aonde quer chegar e qual caminho traçar nessa direção.

“Eu me dedico, pois quero me manter por meio do futebol e ser profissional”, afirma. Os primeiros passos já foram dados no sub-17. Ela viajou com a seleção para a Argentina, o Uruguai e o Paraguai em competições.

Acostumada ao alto grau de exigência do esporte, Lauren enfrenta com firmeza um dos maiores desafios – ficar longe da família. Desde que entrou para a equipe do tricolor, mora no alojamento com as outras meninas. “É duro ficar sem os nossos, longe dos amigos. Mas a gente precisa abrir mão de certas coisas para correr atrás de um sonho”, diz. “Tenho certeza de que vai valer a pena passar por isso.”

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Duda está há pouco mais de dois meses em São Paulo para treinar (Filipe Redondo e Marcus Leoni/CLAUDIA)

Foi com a mesma crença que Maria Eduarda Silveira, 15 anos, saiu de Porto Alegre há pouco mais de dois meses. Ela ainda está se adaptando à nova vida, mas a saudade não dá descanso. “Sempre fui muito apegada à minha mãe e passei por uma grande mudança de vida. Ela e meu pai me ajudam muito, me dão forças, mas é complicado”, desabafa.

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Os pais de Maria Eduarda, Diane e Jorge Silveira, não conseguem conter a apreensão. Viajam sempre que podem para vê-la, mas há dias em que a distância é cruel. “Há algumas semanas passei mal. Meu pai ficou todo preocupado e veio na hora para São Paulo”, conta. “Agora mesmo minha mãe já deve estar mandando um montão de mensagens”, diverte-se. Os celulares são temporariamente confiscados em dias de concentração e competição.

Corrida com obstáculos

Durante a semana, as meninas vivem a mesma rotina. Estudam em um colégio particular conveniado ao clube, voltam para o centro de treinamento, almoçam, fazem exercícios na academia com a supervisão de especialistas e depois partem para o jogo com bola.

Apoio ilimitado, equipe multidisciplinar e um casamento bem-sucedido com a educação são as melhores condições possíveis para quem está em busca de uma posição profissional. Infelizmente, essa é uma realidade restrita aos clubes grandes, com patrocinadores importantes – e às atletas que alcançam os critérios para serem admitidas.

 

 

“São Paulo ainda está à frente dos outros estados da nação em termos de estrutura e oportunidades para as atletas. Hoje, conseguimos um calendário em que as meninas jogam o ano inteiro, em torneios oficiais ou extraoficiais, porque temos muitos times. Brincamos que isso gera as ‘horas de voo’. Assim chegam à categoria adulta mais preparadas”, afirma Thiago Viana, técnico do time sub-17 do São Paulo.

Além do mais, a agenda cheia permite que os times tenham mais argumentos na hora de angariar fundos e se mantenham formados o ano inteiro, sem hiatos. Em outros estados, como Piauí e Mato Grosso do Sul, equipes importantes, caso do Tiradentes e do Moreninhas, precisam ficar em pausa em determinadas épocas do ano. Peneiras para garimpar novos talentos, então, nem pensar. Os custos são altos e nem sempre a adesão compensa.

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Patrícia Maldaner é meio-campista no Chapecoense, de Santa Catarina (Filipe Redondo e Marcus Leoni/CLAUDIA)

Não é o caso da Chapecoense, de Santa Catarina, que joga o ano todo. Mesmo assim, a diferença de incentivo, comparada ao futebol masculino, incomoda a meio-campista do sub-17 Patrícia Maldaner, 16 anos.

“Falando claramente, eles têm privilégios. São mais competições para disputar, por exemplo. Se você confrontar ainda o salário dos homens com o das mulheres, vai ver que o delas também é bem menor”, destaca. “É muito difícil ser atleta no Brasil, especialmente no futebol, que ainda é um esporte muito focado nos homens. Mas a gente levanta e treina todos os dias para mudar isso. As coisas vão melhorar, já estamos no caminho”, completa, esperançosa.

A zagueira Carol Santos, também da Chape, invoca o poder da luta feminina coletiva para mudar esse cenário. “Pode até demorar, mas, se a gente trabalhar todo mundo junto, se as mulheres se unirem, nós vamos conseguir. Aos poucos, chegaremos lá”, acredita.

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Carol Santos é um reforço importante para o time da Chapecoense, de Santa Catarina (Filipe Redondo e Marcus Leoni/CLAUDIA)

A transmissão inédita em televisão aberta da Copa do Mundo Feminina, na França, que começa no dia 7 deste mês, já se mostrou um salto para elas. “É esse tipo de iniciativa que faz a diferença. Quando temos visibilidade, as pessoas descobrem que podemos dar resultado”, assegura Patrícia.

Em outras palavras, o investimento chega à medida que o futebol feminino se estabelece como um negócio lucrativo para o patrocinador. “O masculino já é um comércio que anda sozinho. Quando o empresariado enxergar que há retorno na mesma proporção ao colocar dinheiro na modalidade feminina, ela vai deslanchar. No profissional, isso já vai bem; falta atuar na base”, afirma o técnico do time sub-17 da Chape, João Romeu de Almeida Filho. Outro desafio é bancar que a igualdade comece dentro do clube, na distribuição de renda interna.

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As marcas já estão de olho nesse mercado. Prova disso são os contratos milionários firmados entre gigantes do campo e dos produtos esportivos. Marta assina com a Nike, enquanto Cristiane Rozeira tem contrato com a Adidas. As concorrentes se deram bem na divisão: uma tem a maior artilheira de todas as Copas; a outra, a maior artilheira de todas as Olimpíadas.

O compromisso é ampliar ações como essas para abraçar mais atletas e fazer reverberar em quem ainda engatinha na profissão. Sem o investimento nas garotas em formação – e por isso entende-se capacidade para recebê-las nos centros de treinamento, com suporte e bolsas de incentivo –, a roda dos profissionais e da seleção não gira.

Para a jogadora Andressa Alves, primeira brasileira a jogar no Barcelona e integrante da seleção brasileira para esta Copa, essa é a maior fragilidade atual da modalidade. “Sem a base, as meninas chegam despreparadas para competir nos times principais. O fortalecimento é importante e já se mostrou uma receita de sucesso em países como Estados Unidos e Espanha”, explica.

Reparação histórica

Como todas as narrativas permeadas pela desigualdade de gênero, o futebol sofre com o machismo estrutural. Falando em Brasil, ainda é importante lembrar que as mulheres foram proibidas de jogar bola por mais de 40 anos sob o argumento de que “a prática não condiz com a formação física do belo sexo” – palavras de um decreto-lei do Conselho Nacional de Desportos, entidade da época. Uma pausa que causou danos difíceis de reparar, como as situações de sexismo à beira do campo até hoje.

Para a ex-jogadora da seleção brasileira Aline Pellegrino, cabe à sociedade atual entender as nuances de preconceito e batalhar para transformá-las. Atuando na coordenação do Departamento de Futebol Feminino da Federação Paulista, ela tem um olhar otimista. “A Band, por exemplo, já transmite jogos de futebol feminino há pelo menos duas décadas de forma pontual. Esse não é o primeiro álbum de figurinhas das seleções internacionais. Tudo isso já havia, mas não contava com a atenção devida como está acontecendo desta vez. O espaço da mulher na sociedade vem sendo discutido, e a pauta entrou também na área do futebol”, defende.

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(Filipe Redondo e Marcus Leoni/CLAUDIA)

A paulista também recorda as recentes alterações nas exigências da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entre elas a obrigatoriedade para que todos os clubes tenham a categoria feminina. “Por isso acredito que o desenvolvimento da modalidade não tem mais como recuar. A partir de agora, só contaremos avanços.”

É o momento de fazer uma convocação inversa. Organizar a torcida, arrumar a casa e botar todo mundo para assistir ao futebol feminino, já que visibilidade é uma condição que também funciona sob oferta e demanda. Esse foi o convite que fez a comissão técnica ao final da peneira de maio do Centro Olímpico. Uma vez chamadas aquelas que passaram para a fase seguinte, a injeção de ânimo acertou em cheio aquelas que voltarão à fila.

“Coloca todo mundo na frente da televisão. Pode não gostar, mas não pode não ver. É hora de provar que uma Marta faz um gol mais bonito do que um Neymar, que uma Cristiane dribla melhor do que um Ronaldo. É hora de provar que futebol de menino e de menina é uma coisa só”, diz um dos técnicos em alto e bom som. Na verdade, a hora até já passou.

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