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Como lidar com uma geração que bebe para ficar bêbada

No Brasil, o álcool é proibido até os 18 anos. Na prática, metade dos adolescentes bebe livremente – entre garotas, o consumo aumenta

Por Bruna Nicolielo
23 fev 2017, 09h35
 (Reprodução/ThinkStock)
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Marina, 14 anos, toma cerveja toda semana com os amigos em um bar perto do tradicional colégio particular de São Paulo onde estuda – apesar da idade, ela nunca teve problemas para comprar a bebida. Gabriel, 16 anos, de Porto Alegre, faz “esquentas” regados a muita vodca antes de ir a festas. O menino acha divertido ver a si próprio e os amigos cambaleando – não raro, os registros viralizam nas redes sociais. Já Flávia, 14 anos, bebeu em uma festa na escola, em Campo Grande (MS), e apagou – diz não se lembrar de nada. Seus pais só ficaram sabendo do episódio porque ela foi parar no pronto-socorro.

As histórias desses adolescentes estão longe de ser casos isolados e mostram um panorama complexo e perigoso. Segundo levantamento realizado pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas de Álcool e Drogas (Inpad), ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cerca de 50% dos brasileiros com idade entre 12 e 17 anos já beberam. Preocupa o padrão de consumo, compulsivo e periódico, que intercala perío­dos de abstinência e ingestão intensa. Entre garotas, registrou-se ainda um aumento da ingestão exagerada – cinco doses ou mais numa mesma ocasião. O número quase dobrou em seis anos. É o beber para ficar bêbado, comportamento conhecido pelo termo em inglês binge.

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Uma legislação frouxa, associada a mudanças culturais, ajuda a explicar o fenômeno. “No Brasil, diferentemente de outros países, não é preciso ter licença específica para a comercialização de álcool, que é vendido em toda padaria. Além disso, qualquer pessoa pode encher um isopor e vender a adolescentes sem nenhuma fiscalização”, diz Clarice Sandi Madruga, professora da Unifesp e coordenadora da pesquisa. “A propaganda voltada ao público jovem é intensa, em canais frequentados por eles, como as redes sociais, e mostra a bebida como algo libertador.” O apelo publicitário é ainda mais sedutor para as meninas, ávidas por adentrar redutos antes exclusivamente masculinos. Não por acaso, a hashtag #belarecatadaedolar, que tomou as redes sociais em 2016, ganhou a versão cool #beladesbocadaedobar.

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Ao lado da falta de fiscalização, caminha a associação do ato de beber a experiências consideradas positivas, como sentir-se menos tímido, mais engraçado ou divertido e ter êxito na busca de parceiros. Tudo sob a influência de hábitos familiares, do grupo de amigos, de traços da personalidade, como rebeldia e baixa adesão a regras, e até de transtornos psicológicos, como ansiedade e depressão.

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A adolescência ainda traz uma agravante de origem neuroanatômica: o gosto por assumir riscos e testar limites. O cérebro do jovem ainda está se desenvolvendo – o circuito de recompensa, associado ao prazer, forma-se na gestação, mas o córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento, raciocínio e controle dos impulsos, é a última parte a amadurecer, por volta dos 21 anos. “Com as áreas de tomada de decisão em desenvolvimento, os jovens demonstram tendência a impulsividade e discernimento duvidoso para julgar situações que oferecem risco. Na prática, eles agem antes de pensar”, diz Sérgio de Paula Ramos, médico psiquiatra e psicanalista com 40 anos de experiência no tratamento de dependências químicas.

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Sempre atenta

“Meu filho bebeu pela primeira vez aos 13 anos, na festa de um colega da escola. Para atender a um capricho do menino, os pais do aniversariante liberaram uma bebida ‘fraquinha’, uma espécie de ponche. Foi o que bastou para meu filho exagerar e passar mal: não estava acostumado e não sabia a hora de parar. Onde já se viu servir álcool em festas para adolescentes? Fiquei revoltada, pois achei que, na casa de amigos, ele estaria protegido. Liguei para o pai do amigo cobrando esclarecimentos pela irresponsabilidade, e o assunto cresceu, envolvendo a escola e outras famílias e criando inimizades. De lá para cá, reforçamos a atenção. Hoje, parece que eventos de adolescente sem bebida não têm graça. A propaganda não ajuda, marcas de cerveja patrocinam festas… Tentamos mostrar que há uma idade adequada para beber e que é possível fazer isso de forma moderada, não para se intoxicar. Mas tenho dúvidas se surte efeito. Hoje, meu filho tem 15 anos e sabe que não pode beber, mas suspeito que transgrida vez ou outra. Ficamos permanentemente de olho.” Julia Andrade, empresária, de Salvador

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Muito além da embriaguez

De forma isolada, exagerar na bebida alcoólica aumenta o risco de envolvimento em atividades sexuais sem proteção e, consequentemente, a exposição a doenças e gravidez precoce. Também eleva, tanto para a vítima quanto para o agressor, a chance de abuso sexual. O risco de acidentes, especialmente os de automóvel, atinge níveis alarmantes.

O uso frequente de álcool na adolescência ainda produz danos de longo prazo. Está associado à queda no rendimento escolar, já que pode ter efeitos na memória e na atenção. Uma pesquisa norte-americana descobriu que jovens com histórico de consumo de álcool tinham mais dificuldade de lembrar de palavras e desenhos geométricos após um intervalo de dez minutos se comparados àqueles que não bebiam. “A substância age alterando a integridade da bainha de mielina, o isolante elétrico que protege os neurônios. Falando simplificadamente, é como um fio que, desencapado, corre risco de curto-circuito”, diz Arthur Guerra de Andrade, coordenador do Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e idealizador do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (cisa.org.br).

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Estudos no mundo todo mostram que o uso precoce de álcool está associado a problemas de saúde na vida adulta, além de aumentar significativamente o risco de dependência e de uso de outras drogas. Segundo o Instituto Nacional para o Abuso de Drogas, dos Estados Unidos, 15% dos que começam a beber com alguma frequência antes dos 15 anos podem se tornar alcoólatras, enquanto o índice é de 2% entre os que esperam até pelo menos 21 anos. Os especialistas são categóricos em afirmar que não existe dose segura para o consumo de álcool por adolescentes. (Aliás, cabe lembrar que, em qualquer faixa etária, bebida em excesso não faz bem a ninguém.)

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No Brasil, legalmente, eles só podem beber a partir dos 18 anos – a venda e o fornecimento antes disso constituem crime desde 2015, com a Lei 13.106. Por isso, pais e responsáveis precisam encarar o problema com seriedade e procurar combater o uso precoce da bebida. O primeiro passo é reconhecer a gravidade da questão e ficar alerta. As atitudes e as posturas de cada família são determinantes para a aquisição do hábito desde cedo, bem como em várias dimensões da vida do indivíduo.

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É o chamado estilo parental, dividido em quatro vertentes: autoritário, permissivo, negligente e autoritativo. Os pais cujo estilo é autoritário fazem muitas exigências, restringem a autonomia e a comunicação, impondo seu ponto de vista, regras e castigos de forma arbitrária. Os de perfil permissivo estabelecem poucas regras e toleram os impulsos dos rebentos. Os negligentes não exigem responsabilidade, mas também não encorajam a autonomia. São indiferentes, autocentrados e recorrem a castigos. Já os de perfil autoritativo valorizam a adesão a regras tanto quanto a autonomia. Encorajam a troca de ideias e compartilham o motivo das restrições – quando o filho não obedece, solicitam que ele explique a razão. “Os filhos de pais com esse perfil consomem metade do álcool e drogas que os dos demais”, diz Ramos.

A condescendência de pais que se definem como os melhores amigos de seus filhos explica por que tantas famílias cedem aos apelos dos adolescentes quando eles pedem festas com bebida alcoólica. “Pais autoritativos, pelo contrário, resistem ao argumento do ‘todo mundo’ e sabem dizer ‘não’. Eles fazem combinados de forma séria e assertiva explicando por que o filho não deve beber. Justificam a proibição falando da lei e dos riscos à saúde”, diz Helena Barros, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e coordenadora do Ligue 132, serviço gratuito e confidencial que oferece orientações sobre drogas. “Um dos pilares do programa é formar pais autoritativos. Infelizmente, as famílias não estão prontas para pensar na prevenção e acabam ligando quando a situação já está bem complicada”, afirma. Um lembrete de Barros: é difícil voltar atrás se já permitiu a bebida.

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Limites definidos

“A influência do grupo é grande. Por que nossos filhos não iam querer beber se os amigos bebem? Quando minha filha, hoje com 26 anos, tinha 16, fomos buscá-la em uma festa no clube e nos deparamos com uma cena horrível: cerca de 50 adolescentes deitados, vários deles vomitando, esperando os pais na secretaria. Experiências como essa me ajudaram com meu menino, hoje com 17 anos. Quando ele sai, bato na tecla: ‘Vai querer perder a festa?‘, ´Vai pagar mico?’. É importante conhecer os amigos, levar e buscar, mostrar cuidado, ouvir o que ele tem a dizer e incentivar trocas. Outro dia, ele veio avisar de uma festa open bar na casa de um amigo. Reagi: ‘Como assim? Vocês têm 17 anos!’. Felizmente, ele acabou desistindo porque está numa fase saudável e não queria perder a academia no dia seguinte. Aproveitei: ‘Tem razão, o álcool acaba com a resistência, você não vai estar disposto para se exercitar. De que adianta viver de ovos e arroz integral e beber? Que tal sairmos nesse dia para comer um sushi?’. Ele topou. Não consigo impedir que ele beba, mas devo ajudá-lo a conhecer seus limites.Jaqueline, relações-públicas, de Porto Alegre

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Da porta para dentro

O Sul e o Centro-Oeste concentram os maiores índices de consumo entre estudantes do 9º ano do ensino fundamental, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em 2016. E Porto Alegre é a capital com mais bebedores precoces. Cada família deve estabelecer suas próprias regras, e ser claro quanto a elas é útil, mas mesmo pais cuidadosos não estão a salvo.

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A diretora de recursos humanos Sônia, de Porto Alegre, tem um combinado com os filhos, uma menina de 16 e um menino de 19: beber, só depois dos 18 anos. Isso não a poupou de lidar com um porre da filha. “O álcool está em todas as festas. Qualquer família está suscetível. Então, é preciso fechar o cerco”, diz ela, que, com outros responsáveis, entrou com uma ação no Ministério Público do Rio Grande do Sul reivindicando ações de prevenção e combate ao consumo de álcool entre os jovens.

Como resultado dessa solicitação, o MP organiza um fórum de discussão sobre o tema desde 2011, além de fiscalizar festas de formatura. “A venda de bebidas é proibida nos eventos, mas os jovens já chegam alcoolizados. O número de atendimentos aumenta a cada ano”, explica a procuradora de Justiça Maria Regina Fay de Azambuja. A intervenção não é punitiva, mas voltada à manutenção da saúde. Eles são levados à promotoria da infância, que sugere encaminhamentos. “E tão importante quanto atendê-los é localizar os adultos que fornecem a bebida”, finaliza.

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