Ana Michelle Soares: “O câncer não precisa ser só sofrimento”
Há 10 anos em tratamento contra o câncer, Ana Michelle evita metáforas bélicas para falar sobre a doença e fundou centro para acolher pacientes paliativos
A vida é até não ser mais. A frase parece óbvia à maioria de nós, mas tem outro sentido para Ana Michelle Soares. A jornalista, aos 28 anos, descobriu um câncer de mama. Aos 32, recebeu a notícia de metástase no fígado. Há 10 anos está em tratamento. “Pessoas que estão morrendo ainda estão vivas. Chamam os pacientes de terminais, mas eu não estou terminando nada, estou aqui”, avisa a brasiliense, autora de Vida Inteira (Sextante), lançado este ano.
Escrever é uma atividade constante na vida de Ana Michelle, tanto é que ela virou jornalista. Contudo, ao descobrir a doença inesperada, não parecia fazer sentido colocar nada no papel. O pensamento mudou quando Ana Michelle entendeu que não concordava com a forma que as pessoas com câncer eram retratadas.
“Eu ouvia dos outros que era uma guerreira. Quando alguém morre, falam que perdeu para a doença. São metáforas do câncer, todas bélicas. E parece que você só é vitoriosa na cura. Por ter uma metástase, já sou uma perdedora?”, questiona ela. “As pessoas têm um legado, uma biografia que deve ser respeitada. É um sofrimento insano ouvir esse discurso de campeão, heroína e de perdedor. Não se tem solidariedade real porque não se fala sobre a realidade da rotina da doença”, continua Ana Michelle.
Além de publicar o livro, que mistura sua história, reflexões sobre as vivências e experiências na última década e textos poéticos sobre amor, vida e dor, Ana Michelle também fundou, junto com a médica Ana Claudia Quintana Arantes, sua paliativista, a Casa Paliativa.
No espaço, elas acolhem pacientes para falar sobre dor, autoconhecimento e vida, essa que não acaba antes da hora. Ana Michelle também escuta, ato simples e importante para o acolhimento, mas tão raro. “Quero que as pessoas sejam bem cuidadas, vistas, que tenham suas dores legitimadas. Essas pessoas são olhadas com dó quase a vida toda, mas elas precisam mostrar que não estão entregando o jogo. Nada é perfeito e maravilhoso, mas é bom. A vida é o emocional, o psicológico, o bolinho de chuva, o abraço gostoso que você dá, o copo de água que você não tomava há algum tempo porque estava enjoada depois de uma sessão de quimioterapia e fala: ‘Nossa, que gostoso’. Tudo isso faz parte”, afirma a escritora.
#Superpaliativa
Em setembro, em seu perfil do Instagram, @paliativas, Ana Michelle postou sobre a 50ª sessão de radioterapia e brincou que já é praticamente uma personagem da Marvel, a Vingadora Paliativa. O tratamento contínuo vai sendo adaptado de acordo com a situação da doença. “Toda vez que a quimioterapia falha, eu troco. Tenho um arsenal ao qual eu posso recorrer, então talvez eu tenha mais anos de vida. Mas o câncer não é só a doença, o físico, como pensam alguns médicos. Tenho a sorte de contar com uma equipe multidisciplinar, que levam em conta as questões emocionais, espirituais. O olhar tem que ser: ‘Como posso ajudar essa pessoa a viver melhor?'”, explica.
Mesmo porque, quando descobriu o câncer, não era o sintoma físico que magoava Ana Michelle, mas pensar nas realizações dela até ali. “Estou morrendo e olha o que eu fiz da vida. Sentia culpa, não estava vivendo, apenas seguindo o fluxo, sendo, aguentando tanta coisa. Quando a gente entende que não há tempo a perder, muda tudo, não se pensa em finitude”, lembra ela, que procurou terapias, religiões e experiências espirituais diversas para compreender melhor o processo que se desenrolava internamente. “Não precisa ser só sofrimento. Encontrei a cura para minha alma e quero oferecer isso a outras pessoas que não encontram o apoio necessário”, fala.
Durante seu tratamento e as buscas espirituais, Ana Michelle conheceu Renata, uma amiga que também tinha sido diagnosticada com câncer terminal. Juntas, elas viveram a amizade ao máximo, realizando sonhos e cumprindo alguns desejos de uma bucket list, a lista dos sonhos para antes de morrer. “Eu vi como é a terminalidade quando você tem um suporte com a Renata, minha amiga. Ela não estava num sofrimento bizarro. Ela resolveu todas as questões dela, a família falou e ouviu tudo que precisava. Dá outro sentido pra esse luto. E outro sentido para o que eu pensava que era o fim”, descreve.
“A gente falou muito abertamente sobre o que achava que tinha perdido, o que era morrer, o que tinha deixado de fazer. Isso foi transformador, tão honesto. Entendi como, durante a vida, perdemos tempo tentando convencer o outro que estamos certos. Mas é preciso se libertar disso e viver a vida de acordo com o que se acredita”, defende Ana Michelle.
O livro de Ana Michelle pode ser comprado aqui.