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Cresceu o consumo de álcool na pandemia. Veja os riscos para a saúde

O isolamento e os medos da pandemia fizeram muita gente procurar conforto ou distração no álcool. Especialistas alertam para os sinais de perigo

Por Ana Carolina Pinheiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
21 ago 2021, 11h00
copos de bebida vermelha
 (Yulia Reznikov/Getty Images)
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ponteiro do relógio marcava 11h30 da manhã quando a paulistana Cuca Elias, 47 anos, pensou em preparar um drinque. A ida à cozinha foi adiada após um julgamento pessoal que ecoou em sua cabeça. “Achava que beber antes do meio-dia configurava alcoolismo e comecei a estabelecer limites do que era tolerável”, conta a personal stylist que mora com as duas filhas, o marido e o cachorro.

 

Mesmo com a casa cheia, Cuca tinha apenas sua própria companhia para secar as garrafas de vinho e gim. “Bebia uma por dia”, confessa sem se orgulhar do feito. Antes da pandemia, o consumo de bebida alcoólica já fazia parte da sua rotina, mas de forma social – nas rodas de conversa no bar, durante o fim de semana, ou na happy hour após um dia de trabalho.

Só que o status dessa relação foi modificado com a nova rotina no isolamento. “Fiquei meses sem pegar trabalho e descontando minhas preocupações na bebida. Criei o hábito de beber enquanto cozinhava, atividade frequente no último ano, porque me juntei a um projeto de voluntariado que distribui marmitas”, explica Cuca.

A dose extra não pesou só para ela: 42% dos brasileiros reconhecem que o álcool ganhou mais espaço na vida durante a pandemia. O dado foi obtido em uma pesquisa feita pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) com 23 mil adultos entre maio e junho de 2020. O aumento se concentrou em pessoas com alto poder aquisitivo e apresentou uma consequência séria, o impacto emocional.

copos de bebida vermelha
(Yulia Reznikov/Getty Images)

Sintomas como medo, ansiedade, tensão e nervosismo foram relatados por 52,8% dos entrevistados. O risco iminente do vírus responsável pela Covid-19 tirou o sono e a estabilidade de muita gente. A escolha pelo álcool como saída dessa bomba-relógio tem explicação, de acordo com o médico Arthur Guerra. “O álcool tende a ‘diminuir a atividade’ cerebral, servindo como um sinalizador indireto de recompensa para algumas regiões do sistema nervoso. Por isso, certas pessoas recorrem ao álcool como uma espécie de refúgio, uma válvula de escape para enfrentar problemas e aliviar tensões”, diz ele, que é presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool.

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No entanto, a resposta do organismo à bebida alcoólica pode ser também um efeito rebote, já que há a possibilidade do desconforto emocional ser intensificado. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade Estadual de Campinas relacionou o aumento do estado depressivo com o do consumo de álcool na pandemia: 24% das pessoas entrevistadas entre 24 de abril e 8 de maio de 2020 relatou sentimento de tristeza e depressão e maior ingestão de álcool no isolamento.

O álcool tende a ‘diminuir a atividade’ cerebral, agindo como um sinalizador de recompensa. mas Beber nunca será uma ferramenta para lidar com problemas”

Arthur Guerra, médico

Reconhecer que exagerou na dose, porém, não é suficiente para as pessoas darem o próximo passo, que é pedir ajuda. De acordo com o estudo da Opas, a maioria dos entrevistados tenta reduzir o consumo sozinha e sem auxílio profissional. Cuca tomou o caminho contrário e abriu o jogo com sua médica. “Era para ter emagrecido uns 10 quilos entre março e agosto, mas acabei engordando 12 porque troquei a comida pela bebida”, conta Cuca.

A personal stylist lembra que a preocupação até então era com a balança, por isso a escolha pelo gim – bebida conhecida pelo baixo valor calórico. “Vi que não estava certo. Ainda bem que tive discernimento, que percebo que veio com a idade, para buscar ajuda. Hoje, tomo remédio, retomei a rotina de exercícios e procuro me alimentar bem”, revela.

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A bebida nunca foi um tabu para ela. Pelo contrário, entre as amigas, o novo hábito aparecia com frequência nas conversas. “Nós estávamos no mesmo barco, sobrecarregadas, então tinha certa naturalidade no fato de estarmos bebendo mais”, afirma Cuca, que sabe que essa naturalização é uma armadilha. “Estava a um pulo de virar alcoólatra. Tenho histórico de alcoolismo na família, então não podia correr o risco”, pontua.

A lembrança da vizinha avisando que seu pai estava alterado no bar ainda é vívida para a advogada Flávia Renata Menezes, 36 anos, de Campo Grande. “Nós morávamos em uma cidade pequena. Eu me recordo dele chegando em casa carregado em um carrinho de mão e das pessoas falando para a minha mãe: ‘Seu marido quer brigar’. Brinco que nasci com duas doses acima”, comenta Flávia sobre um dos motivos para não colocar uma gota de álcool na boca até a pandemia. Quando a rotina apertou, porém, a cerveja passou a regar suas conversas com o marido.

Segundo Alessandra Diehl, psiquiatra e pesquisadora da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a preocupação de Cuca e Flávia tem fundamento, já que a literatura médica comprova uma predisposição para a dependência em caso de histórico familiar.

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No cérebro, o córtex pré-frontal é a região responsável pela “tomada de decisão”, ou seja, a que irá conduzir a aceitação ou negação diante de uma proposta. De acordo com um estudo feito por pesquisadores da Society for Neuroscience, publicado pela revista eNeuro, o componente familiar de abuso de álcool deixa esse poder de decisão fragilizado antes mesmo da primeira gota.

Flávia entrou no isolamento grávida de sua segunda filha, que nasceu em abril do ano passado. O ritmo acelerado do trabalho e o começo da pandemia sobrecarregaram os momentos já difíceis do final da gestação. “Um dia, pedi para o meu marido uma garrafa de cerveja. Ele não me condenou”, revela a advogada, que até hoje acompanha o marido nas happy hours bebendo álcool na xícara de café.

Descontava qualquer coisa na bebida. Se estava triste, bebia para esquecer. Falando com amigas, muitas fizeram o mesmo e naturalizamos essa atitude”

Cuca Elias, personal stylist

“Certa vez, meu filho falou que eu era menina e que não podia beber. Aquilo me marcou e resolvi seguir dessa forma”, revela. Segundo Alessandra, assim como Flávia, muitas mulheres ingerem bebida alcoólica durante a gravidez e a amamentação. “Não dá para romantizar essa fase. No caso dela, deve ter ocorrido uma compensação de frustrações e da carga pesada da maternidade e do trabalho na bebida. Precisamos de esforços do poder público para mostrar as consequências da síndrome do alcoolismo fetal, que são parecidas com as do vírus da zika: microcefalia e atraso desenvolvimento neuropsicomotor”, explica Alessandra. Pelo leite materno, não é possível desenvolver a síndrome, porém uma quantidade de álcool acaba sendo passada ao bebê.

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Os drinques em excesso também são porta de entrada para outros problemas físicos. “O álcool é fator de risco para mais de 200 tipos de patologias. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que não existe nível seguro para seu consumo. Atualmente, cerca de 5% de todas as mortes anuais no Brasil são atribuíveis ao álcool. As causas vão desde doenças crônicas não transmissíveis, como a cirrose hepática, até acidentes de trânsito, cuja probabilidade aumenta muito quando a pessoa está sob efeito da substância”, comenta Arthur.

copos de bebida vermelha
(Yulia Reznikov/Getty Images)

Sobre o mito de que mulheres são mais suscetíveis a desenvolver dependência, o especialista explica que, na verdade, ela evolui com mais velocidade nelas do que nos homens. “Isso é conhecido como efeito telescópico, em que as mulheres acabam indo do primeiro gole (geralmente na adolescência) até a detecção de dependência de maneira mais acelerada”, afirma o psiquiatra. Além disso, a composição biológica do corpo da mulher possui menos água, aumentando a concentração de álcool, e menos enzimas responsáveis pelo metabolismo da bebida.

Sinais de alerta

A assistente social Simone Cobra, 52 anos, de São Paulo, estava mais do que acostumada com uma vida social agitada… Até chegar a pandemia. Dentro de casa com a mãe, ela não via sentido no consumo de álcool. “Eu associo o álcool à socialização, não gosto de beber sozinha. Por outro lado, passei a comprar mais garrafas de vinho, o que não tinha costume”, confessa.

Comparando o período de 24 de fevereiro a 3 de maio de 2019 ao mesmo espaço de tempo em 2020, a plataforma Compre & Confie identificou essa mudança de comportamento. A venda online de bebidas alcoólicas subiu 93,9%, o referente a cerca de 248,9 mil compras. O isolamento transformou a relação com a bebida para muita gente.

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copos de bebida vermelha
(Yulia Reznikov/Getty Images)

“Nos últimos meses, quando bebi, percebi que o efeito era mais forte no meu organismo do que antes da pandemia. Não vou parar de consumir álcool, mas quero reduzir daqui pra frente”, considera Simone. Já a Flávia é categórica na sua vida pós-pandemia: “Não quero beber mais nada. Espero poder falar daqui seis meses que nunca mais ingeri álcool”. Ela diz não enxergar o seu limite com a bebida. “Até o primeiro gole, ninguém sabe qual relação terá com o álcool”, reflete.

Não há um limite aceitável de ingestão de álcool, segundo os especialistas, uma vez que qualquer bebida alcoólica é considerada uma droga. Como cada organismo reage de um jeito, Arthur revela que com as respostas dessas cinco perguntas é possível saber se a relação com o álcool é nociva: Você sente um forte desejo de beber? Tem dificuldade de parar e extrapola na quantidade ou duração? Prioriza a bebida dentro da sua rotina? Não consegue parar mesmo ciente das consequências negativas? Quando não bebe, sente sudorese, tremor e ansiedade? Caso sua resposta tenha sido positiva para algum desses questionamentos, a orientação é procurar o atendimento de um especialista.

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“Os sentimentos e as demandas que cada indivíduo tenta recompensar com a anestesia do álcool precisam ser investigados. Só compreendendo a origem daquele desconforto a pessoa pode ser tratada adequadamente”, orienta Alessandra.

Em um dos quadradinhos de uma chamada de vídeo, um machucado na perna serviu como um alerta. “Isso foi resultado de uma bebedeira dessa semana. Estou mostrando para vocês porque não quero que isso aconteça mais”, desabafa uma alcoólica da Associação Alcoolismo Feminismo (@alcoolismo_feminino) em sua primeira reunião. Fundado pela publicitária Graziella Santoro e a psicóloga Claudia Leiria, o grupo surgiu pouco antes da pandemia, em fevereiro de 2020, para tornar o tratamento de mulheres ébrias mais acolhedor.

“Sou alcoólica e sempre senti dificuldade para frequentar os encontros do Alcoólicos Anônimos (AA) por ser a única mulher. Lembro que as poucas participantes que entravam acabavam desistindo com o tempo”, conta Grazi, que se uniu à sua psicóloga para mudar esse cenário. Atualmente, são mais de 700 mulheres no Brasil e no mundo que dividem suas experiências, passam por atendimento multidisciplinar em áreas como psicologia, nutrição e até jurídica.

“Algumas são vítimas de violência doméstica, por isso oferecemos uma advogada para dar orientação de como se livrar desse tipo de relacionamento do ponto de vista legal. Elas também integram grupos com recortes de orientação sexual, raça e maternidade. As mães, por exemplo, sofrem com uma culpa devastadora em relação à forma que trataram os filhos ao ficarem embriagadas”, explica. Há 12 anos sem colocar uma gota de álcool na boca, Grazi faz questão de incentivar suas companheiras de caminhada, mostrando que é possível ter felicidade sem a bebida.

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