Como a dança pode ser um instrumento de liberdade para a mulher
As aulas incentivam a celebração dos diferentes corpos e suas habilidades, criando círculos de apoio e sororidade
“O corpo é um espaço de poder”, defende a artista multilinguagem Taisa Machado, 30 anos. Há quatro, ela comanda oficinas de dança que atualmente acontecem em um galpão na Lapa, no Rio de Janeiro. Ali, a recomendação é rebolar. Com o nome de Afrofunk Rio, o que se iniciou como uma pesquisa para entender o eixo entre as danças tradicionais africanas e o funk carioca acabou se tornando um vibrante movimento de força e liberdade feminina.
De shorts, top e pés descalços, a mulherada trabalha diferentes requebrados enquanto escuta Taisa falar sobre a importância do ato em culturas ancestrais. “O intuito é estimulá-las a entrar em contato com o corpo e deixá-lo brilhar”, defende a carioca. “Nem sempre o corpo é nosso. Muitas vezes, é tomado pelas neuroses do padrão, pelo fato da sociedade não aceitar que a mulher sinta prazer. Usamos as informações para trazê-lo de volta ao nosso controle.”
A hostess Valentina de Carvalho, 25 anos, frequenta as oficinas (entre idas e vindas) desde que Taisa formou a primeira turma. “Até meu jeito de andar na rua mudou”, comenta. “Comecei a me sentir mais confiante nas festas. Não importa se estão olhando ou não, vou dançar como acho legal, é assim que me expresso.” O efeito atingiu até a vida sexual. “Parei de me importar se estou fazendo certo, agradando. E flui muito melhor”, acrescenta Valentina.
A 430 quilômetros de lá, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, o discurso se repete no Maravilhosas Corpo de Baile. Criado pela atriz, empresária, dançarina e DJ catarinense Graziela Meyer, 40 anos, o estúdio de dança e pole dance se propõe a respeitar as “experiências de mulheridade” para que todas se sintam confortáveis independentemente da forma física, origem social e trajetória.
“Costumo falar que o corpo é o instrumento que conta a nossa história. Tudo está gravado nele: quem são seus pais, se você já se quebrou, se bebe muito, se come pouco, se transa ou não. Ele trouxe você aqui e merece ser celebrado”, enfatiza. Assim, mostra que não há habilidade que torne uma aluna melhor do que a outra. Quando alguém tem pouca flexibilidade, por exemplo, aprende como pode usar essa característica a seu favor. “Cada corpo tem aptidões únicas. Por isso, é incrível a dança que você faz, o jeito que só você se movimenta.”
Para Graziela, quando alguém internaliza essa ideia, leva o poder, a confiança para outros âmbitos da vida. “Ela não vai permitir ser maltratada no trabalho, porque saberá que não podem falar com ela daquele jeito. Vai sair de um relacionamento ruim porque entenderá que é capaz de coisas incríveis e que não precisa se submeter ao parceiro.”
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A assessora de imprensa Ana Júlia Castilho, 28 anos, aluna de pole dance no Maravilhosas desde o ano passado, reconhece essa sensação. “Se aguento uma hora segurando todo o peso do corpo com as mãos, consigo também enfrentar uma guerra”, diz. Apesar de nunca ter se sentido inibida com o próprio corpo, ela conta que era tímida, interagia pouco com as pessoas. “Sinto que posso conversar com todo mundo, ir para lugares diferentes, ser uma melhor companhia até para mim mesma.” Além de frequentar as aulas regulares, aos sábados, Ana Júlia participa do Maraviplus, oficina de pole dance para gordas. “Observar seu corpo em um espaço em que outras pessoas passam por experiências e sensações semelhantes às suas é gratificante.”
Ponto de Virada
Nem sempre a relação de Graziela com o corpo foi pautada por liberdade e amor. Aos 8 anos, fez a primeira dieta. “Ouvi a vida inteira que ninguém gosta de menina gordinha e que, para ser amada, precisaria emagrecer”, conta. De 2012 a 2015, após engordar 10 quilos em um período de alimentação desequilibrada vivendo nos Estados Unidos, a dançarina desenvolveu uma obsessão por dietas e exercícios.
“As blogueiras fitness estavam no auge, e eu copiava tudo o que elas faziam”, lembra. Levou marmita até para o Natal na casa da avó. No Réveillon, enquanto os amigos aproveitavam a ceia, foi correr para que pudesse tomar espumante na virada. Não se permitia sair das regras que criara. O encontro com a pole dance aconteceu quando buscava uma atividade física que a ajudasse a alcançar seu objetivo inatingível de corpo extremamente magro e forte.
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Tudo mudou quando fez uma aula com uma professora considerada fora do padrão. “Olhei para ela e pensei: ‘Coitada, nunca mais vou voltar’. E então, quando ela começou a se movimentar, vi o que o corpo dela fazia em volta da barra e fiquei fascinada.” Para poder se prender de cabeça para baixo na barra da pole dance, é preciso esmagar a coxa no mastro. Formam-se dobrinhas, as celulites ficam mais visíveis. “Até que você se percebe fazendo um movimento incrível e se sente uma superpessoa por conseguir executá-lo. E aí só isso importa”, ressalta.
Taisa, por sua vez, frequenta bailes funk desde que tinha 14 anos. Ela só não sabia, à época, que o passatempo transformaria a sua vida. “Nunca imaginei que eu fosse criar uma metodologia que ajudasse o público feminino na compreensão do próprio corpo e da cultura da favela”, compartilha. “O funk me deu tudo que tenho hoje. Conquistei a oportunidade de falar, de viajar, de conhecer gente e de quebrar barreiras de classe e religião.” Embora a oficina tradicional mescle ritmos, entre eles o dancehall, da Jamaica, e o baikoko, da Tanzânia, é o pancadão que domina as noites de sexta-feira. “Falamos sobre sexualidade, e a aula acaba ficando quente. As meninas saem animadas”, conta, rindo, Taisa, que nomeou o workshop de oficina proibidona.
Apesar da temática explícita, o cuidado e o respeito norteiam o curso. “Faço uma curadoria de músicas, assim como acontece no meu trabalho de DJ. Quando acho que o som, em vez de enaltecer o prazer feminino e dar tesão, agride a mulher e causa asco aos ouvidos, eu não toco. Por isso, priorizo as MCs”, explica ela.
Além do gingado
Não é só enquanto a música rola solta que o feminismo permeia as aulas. No estúdio paulistano, por exemplo, os filhos das alunas são bem-vindos quando as mães não têm onde deixá-los. “Ao excluir uma criança, você exclui uma mãe”, defende Graziela, que interrompe as aulas para dar atenção aos pequenos.
“Se alguém achar ruim, entendemos que vamos perdê-la, mas tudo bem, porque é nisso que acreditamos.” Outro cuidado é a manutenção da pluralidade entre seus funcionários, garantindo que pelo menos 50% deles sejam mulheres não brancas e/ou LGBTs. “Priorizamos a contratação de quem não seria bem recebido no mercado de trabalho e na dança”, afirma.
Já Taisa tem muito orgulho da rede de confiança que nasceu em seu estúdio. “Vamos para a praia, festas, aniversários. Já aconteceu de uma menina arrumar emprego para a outra. Teve uma mineira que se mudou para o Rio e procurou a oficina para fazer amigas”, relembra. “Criamos um ambiente seguro e criativo, onde as pessoas ficam à vontade, sensualizam sem disputa. Isso abre um canal para a gente se conectar de verdade.”
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