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A mulher que abriu um instituto após perder filhos e o neto em Brumadinho

A vida e os planos de Helena Taliberti mudaram totalmente após rompimento da barragem, há um ano. Ela quer ajudar vítimas de tragédias com entidade

Por Bárbara dos Anjos Lima
Atualizado em 17 fev 2020, 11h12 - Publicado em 3 dez 2019, 07h00

Os planos de Helena Taliberti, 62 anos, eram se aposentar e curtir o neto que estava por vir. O projeto foi interrompido pelo rompimento da barragem de Brumadinho. De uma vez, ela perdeu a filha, o filho, a nora grávida (de um menino que se chamaria Lorenzo), o ex-marido e a esposa dele. Um ano depois, transformou o luto em ação ao criar um instituto para levar adiante os ideais dos filhos. Veja o depoimento dela:

“A dor é imensa. Não passa. Ainda mais nesta época do ano. No dia 18 de dezembro, meu filho, Luiz, teria feito 32 anos. Depois veio o Natal e, no dia 3 de janeiro, seria o aniversário de 34 anos da minha filha, Camila. Esse era sempre um período de muitas festas. Quando falo deles e do que aconteceu, sinto como se não fosse um assunto normal. Não é o luto comum. Porque todo dia a gente fica sabendo que aquilo poderia ter sido evitado. A dor vem e vai, mas, aos poucos, vou seguindo a vida. Tem dias de extremo desespero, em que eu ainda acho que eles vão entrar pela porta e falar: ‘Mãe, estávamos de férias, acabou a bateria do celular e não tinha tomada’. E tem dias em que estou mais disposta.

Meus filhos passavam por uma ótima fase da vida. A Camila fazia o que gostava, estava apaixonada. O Luiz tinha sido nomeado diretor do escritório de arquitetura onde trabalhava, na Austrália. Ele e a esposa, Fernanda, estavam radiantes com o bebê que chegaria em breve.

Naquele 25 de janeiro, eu passeava pelas ruas de São Paulo quando recebi a notícia de que uma barragem havia se rompido em Brumadinho, em Minas Gerais. Meus filhos, o pai deles e a madrasta estavam na região para visitar o museu de Inhotim. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, voltei para casa em busca de informações. Depois disso, foi um turbilhão de emoções. Aos poucos, as notícias foram chegando. O corpo do Luiz foi o primeiro a ser encontrado, no dia 29. Acharam a Camila junto do pai, no dia 31. A Fernanda, só 22 dias depois da queda, em 16 de fevereiro. O corpo da madrasta dos meus filhos não foi encontrado até hoje, acredita?

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Essa ruptura causou em mim muita indignação no início, muita dor. Então, comecei a perceber que o impacto nas outras pessoas também tinha sido imenso. Logo após a morte deles, fizemos uma missa em São Paulo. Mais de 700 pessoas compareceram. Um mês depois, os amigos da Camila e do Luiz fizeram uma homenagem, e foram quase 300 pessoas. Naquele dia, eles nos propuseram criar uma fundação. O Instituto Camila e Luiz Taliberti é o legado dos meus filhos.

(Marcus Leoni/CLAUDIA)

Eu e minha filha batíamos muito de frente. O que ela falava mexia comigo, ela cutucava umas feridas. Camila me dizia: ‘Você não tem noção das coisas que acontecem neste mundo, você precisa se inteirar’. Eu estava mesmo presa numa bolha e, quando ela morreu, as fichas começaram a cair. Tudo o que a Camila falava estava e continua acontecendo. Às vezes, achava que era exagero dela, mas não. Ela tinha uma noção social muito forte. Um pouco antes de ela morrer, tivemos umas das nossas brigas. Ela disse: ‘Mãe, enquanto todo mundo não tiver as mesmas oportunidades e as mesmas condições que eu tenho, não vou sossegar’. Ela era muito engajada. No fim, eu concordei com ela. Ainda bem.

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Camila era advogada especializada em direito digital e fazia um trabalho com mulheres em situação de violência doméstica e grupos vulneráveis. De vez em quando, ela acordava no sábado às 6 da manhã e ia para uma comunidade onde passava o dia dando assistência. A gente só ficou sabendo disso depois que ela morreu.

Meu filho era uma pessoa muito interessante também. Tinha uma forma especial de olhar a vida. Se eu reclamava de alguma coisa, de alguém, ele me dizia: ‘Mãe, o que passou passou. Aconteceu, mas você entende que a pessoa fez aquilo porque era o que ela podia fazer na época? Não dava para fazer melhor.’ Isso é a essência do perdão. O Luiz sempre buscou qualidade de vida, o que, claro, inclui preservação e contato com o meio ambiente. Ele foi morar na Austrália atrás disso.

O instituto nasceu de uma tragédia, mas queremos trilhar um caminho de paz. Queremos somar. Mostrar o que aconteceu e o que podemos mudar

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O instituto nasceu com essa motivação: a defesa de direitos humanos e de grupos vulneráveis – especialmente mulheres – e do meio ambiente. Como juntar tudo isso? Acho que a gente tem que olhar o que fica dessas tragédias. Em Brumadinho, por exemplo, há 200 viúvas. De uma hora pra outra, tem meninas órfãs, famílias dilaceradas. Essas pessoas precisam ser ouvidas. Também queremos apoiar pesquisas sobre atividades que impactam negativamente o meio ambiente, promover mais debates, eventos e engajar organizações.

Hoje somos cerca de 40 pessoas. Tem cineasta, jornalista, advogado, artista plástico… Em 2019, já tivemos algumas ações importantes. O lançamento do instituto foi na Câmara Municipal de São Paulo, em 25 de julho, quando a tragédia completou seis meses. Realizamos o debate ‘Destinos Rompidos: O Impacto das Barragens na Vida das Mulheres’. O segundo grande evento foi a projeção do documentário O Amigo do Rei, de André D’Elia. É um trabalho bastante completo sobre o rompimento de Mariana. Em seguida, teve o debate ‘Mariana: A Sirene de Brumadinho Que Não Foi Ouvida’. A discussão se deu em torno da repetição de falhas que também ocorreu em Brumadinho.

Fizemos duas viagens. Em uma delas, fomos para a Suíça conversar com dois deputados do Partido Verde de lá. Na outra, o Vagner, meu marido, foi para Londres se encontrar com um grupo de investidores de mineração com foco sustentável, responsável.

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Para 2020, os planos são muitos. Além dos eventos, queremos divulgar o trabalho de uma série de profissionais que estão engajados no tema – são livros, pesquisas acadêmicas, documentários. Vamos montar um acervo virtual bem completo, com estudos e informações sobre tragédias ambientais e também sobre ecologia. A ideia é estruturar o instituto de tal forma que ele se torne uma referência. Teremos ações no dia 25 de janeiro, quando completa um ano do rompimento da barragem. Todas as informações estarão na nossa página do Facebook (facebook.com/institutocamilaeluiztaliberti).

O instituto nasceu de uma tragédia, mas queremos trilhar um caminho de paz. Não pode ser uma voz raivosa, tem que ter cuidado com o tom para convencer as pessoas a escutar, sabe? Não é o caso de ‘nós contra eles’, e sim de ‘nós com eles’ ou ‘nós e eles’, que é o mais difícil. O discurso da afronta não dá certo, não leva a nada. Queremos somar. Precisamos mostrar o que aconteceu e o que podemos mudar.

Helena com o marido, Vagner, e os filhos dela. A foto foi tirada dia 6 de janeiro do ano passado, estreando a câmera de Luiz, comprada para a viagem a Inhotim (Acervo pessoal/CLAUDIA)

Hoje eu sei que ter raiva não adianta. Só faz mal para o hospedeiro. Precisamos diferenciar a raiva da dor. A raiva a gente sente e resolve de outro jeito. Eu fiz umas meditações e ainda tenho que enfrentar meus problemas de raiva, de sentimentos ruins. A dor permanece aqui e é enorme. Também doeu em muitas outras pessoas. O lema do instituto é ‘Nos enterraram, mas não sabiam que a gente era semente’. Quero que os valores dos meus filhos ajudem outras pessoas, que sejam revertidos em ações positivas para a defesa do meio ambiente.

O período é difícil para mim. Mas, de alguma forma, eu estou me realizando com esse trabalho. A Camila tinha razão. Não dá pra parar enquanto todo mundo não tiver as mesmas oportunidades que nós. A gente pode fazer pouco, mas tem que falar muita coisa. Estou satisfeita porque vejo o engajamento de muita gente. Eu ganhei filhos e filhas. E netos. A Camila e o Luiz deixaram sementes de amor e justiça.”

*Depoimento à jornalista Bárbara dos Anjos.

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