Mulheres na ciência: combater a desigualdade de gênero é necessário
Entenda como uma das maiores instituições de ciência e saúde no país está combatendo a desigualdade de gênero nessa área
Muita gente lembra quando a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) se destacou no enfrentamento da pandemia ao firmar uma parceria com a farmacêutica AstraZeneca para fabricar vacinas. Uma batalha menos conhecida é aquela que a centenária instituição de pesquisa tem travado contra outro grande desafio da ciência, dentro e fora de seus quadros: a desigualdade de gênero.
As mulheres são maioria entre os pesquisadores e funcionários concursados da Fiocruz, mas estão em menor proporção na diretoria executiva, na vice-presidência e em cargos de coordenação. É o que tem sido chamado na carreira científica de efeito-tesoura: quanto mais alta a função, o número de homens aumenta e o de mulheres diminui.
Recentemente, porém, a instituição tem dado mais atenção a esse problema. Tudo começou em 2009, quando um Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça foi criado para colocar em prática ações de sensibilização voltadas a essas questões.
Segundo Cristina Araripe, coordenadora de divulgação científica e pesquisadora da instituição há 20 anos, a situação das mulheres cientistas na Fiocruz vem se transformando nesse período e a criação do comitê foi fundamental para acelerar o processo. “Não se falava sobre a questão da equidade de gênero, isso não existia”, contou à Claudia. “A cada momento em que se criam estruturas dentro da instituição, a gente constata que houve um incentivo [à promoção da igualdade de gênero]”.
Mas foi quando a atual ministra da saúde, Nísia Trindade, assumiu a presidência em 2017 que o tema ganhou maior relevo dentro da instituição. Primeira mulher a comandar a fundação em mais de um século de história, ela fez do combate às assimetrias de gênero uma prioridade de sua gestão.
Mulheres e meninas na ciência
“O nível de mobilização interna das diretoras de unidades que estavam nos cargos, das pesquisadoras e das estudantes foi imenso. As pessoas começaram a fazer muitas coisas com muito pouco recurso.”
Cristiani Machado, vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz
Mesmo com pouco financiamento disponível, esse direcionamento provocou uma pequena revolução. “O nível de mobilização interna das diretoras de unidades que estavam nos cargos, das pesquisadoras e das estudantes foi imenso. As pessoas começaram a fazer muitas coisas com muito pouco recurso”, disse à CLAUDIA a vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Machado.
O apoio das mulheres da Fiocruz e a vontade política da então presidente abriram espaço para ações maiores, como o Programa Mulheres e Meninas na Ciência, inaugurado há quatro anos. As pesquisadoras da Fiocruz foram para as escolas e trouxeram grupos de alunas da educação básica para dentro das unidades da fundação espalhadas pelo Brasil, buscando incentivá-las a considerar a carreira científica como um caminho possível. Mais de 1.500 estudantes já fizeram parte dessas imersões.
Foi assim que Letícia Meireles Domingues, jovem que cresceu no Complexo da Penha e vive atualmente em Manguinhos – bairro da Zona Norte do Rio onde está instalada a Fiocruz – passou a aspirar a uma carreira na saúde.
Letícia participou do programa no ensino médio, cursado durante a pandemia com grandes dificuldades. Hoje, é bolsista da Fiocruz, técnica em enfermagem e cursa o pré-vestibular para medicina. “O projeto foi muito importante pra mim, me emociono em falar. Antes eu não tinha expectativa para o futuro. Meu sonho é estudar medicina e pesquisar doenças congênitas em recém-nascidos”.
“O incentivo às jovens a seguirem carreira científica não é importante apenas para a área da ciência e tecnologia em saúde, mas para o país”, reforçou a coordenadora de divulgação científica da Fiocruz, Cristina Araripe.
As mulheres da Fiocruz
A contribuição feminina para a história da Fiocruz vem de longa data. Com a gestão de Nísia, iniciou-se um trabalho de valorização da memória dessas pesquisadoras, organizando acervos e produzindo materiais para dar visibilidade à trajetória de cientistas da Fiocruz, como a bióloga e sufragista Bertha Lutz, a médica Maria Deane e a entomologista Alda Lima Falcão. Tornar conhecidas as trajetórias das cientistas permite que elas sirvam de inspiração, além de mostrar o que avançou e quais dificuldades persistem.
Para a vice-presidente Cristiani Machado, os desafios enfrentados pelas cientistas na instituição não são diferentes dos que elas experimentam em geral para avançar na carreira, e têm relação com as desigualdades estruturais da sociedade.
Ela cita o desequilíbrio na divisão de tarefas em casa como um dos fatores que prejudicam as pesquisadoras. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022, do IBGE, as brasileiras dedicam 21,3 horas semanais às tarefas domésticas e ao trabalho de cuidado, quase o dobro do tempo gasto pelos homens, contabilizado em 11,7 horas. Uma das medidas aplicadas em relação a essa desigualdade é que pesquisadoras mães passaram a contar com acréscimo de tempo nos editais da Fundação.
“Na gestão de Nísia, também foi muito importante a gente dar atenção às pesquisas sobre gênero, ciência e saúde. Elas vêm crescendo dentro da instituição”, lembrou Araripe. Muitas dessas pesquisas servem de subsídio para as políticas da Fiocruz nessa área, que têm resultado num aumento no número de pesquisadoras. Entre 2013 e 2020, mais de 70% dos egressos da Fiocruz foram mulheres.
Nesses últimos anos, as cientistas e estudantes da Fundação também começaram a se organizar em coletivos, o que já provocou uma transformação.
“É uma coisa trivial, mas hoje em dia é raro um evento na Fiocruz em que tenha um painel só com homem, porque as pessoas questionam. Vai mudando a mentalidade, a cultura”, observou Cristiani Machado.