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“Depois da euforia, a depressão voltava”: a vida com transtorno bipolar

Dyene Galantini convive com o transtorno bipolar há 15 anos e compartilha sua trajetória para eliminar o estigma que paira sobre distúrbios mentais

Por Camila Pati
Atualizado em 15 jan 2021, 10h29 - Publicado em 15 jan 2021, 10h00

“Um diagnóstico psiquiátrico vem acompanhado de um turbilhão de emoções. Logo ao recebê-lo, em 2005, senti alívio em poder colocar um nome num conjunto de sintomas e saber que o que eu tinha não era uma frescura inventada pela minha cabeça.

Depois, fui tomada pelo desespero de tentar imaginar as consequências. A primeira delas foi aceitar que tomaria remédios para o resto da vida, pois o transtorno bipolar ainda não tem cura. Sim, esses remédios tarja preta sobre os quais as pessoas não cansam de fazer piadas.

Lembro perfeitamente como me senti derrotada na primeira vez em que tomei os remédios. Foi uma sensação de impotência, de não conseguir controlar o corpo e a mente só com força de vontade e positividade, como tinha feito até os sintomas aparecerem.

Dizer a alguém com depressão severa para pensar positivo é o mesmo que pedir a alguém com as pernas quebradas para sair correndo. De depressão eu entendo bem. Por mais de um ano, ela me roubou inúmeras coisas de mim. Incapacitou-me de ter momentos felizes com as pessoas que eu amava, acabou com meu amor-próprio a ponto de eu quase desistir da vida.

A parte mais difícil era acordar de manhã e pensar que teria que viver mais um dia. Levantar da cama era um desafio físico e mental. As pernas não obedeciam, o corpo não impulsionava. Sentia-me completamente presa.

Chorava continuamente e com facilidade. Junto com as lágrimas, a angústia de estar viva, o desespero. O mais incrível é que as sensações brotavam espontaneamente, sem causas. Sentia culpa por causar tanta preocupação aos meus familiares e vergonha ao não controlar minhas emoções. Não dava para fingir que estava tudo bem, os sentimentos eram aparentes.

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Foi o aspecto paralisante da depressão que me levou a procurar um médico. Eu não podia parar. Tinha um emprego que adorava, mas não conseguia executar minhas funções da mesma forma. Tinha atitudes como a de levar meu tapete de ioga ao escritório, fechar a porta da sala e me deitar no chão no meio do expediente. Ou, às vezes, saía mais cedo porque já não conseguia esconder o choro.

Na euforia, meu comportamento era exatamente o oposto. A energia mental era incomparável e a criatividade, latente. Conseguia ‘conectar os pontos’ como ninguém. Meu chefe se impressionava com meu desempenho e eficiência. Mas o que ninguém sabia era que passava dias sem dormir. Só trabalhando. A mente não parava.

Meus pensamentos eram tão rápidos que eu comecei a gaguejar, a fala não acompanhava a velocidade das minhas ideias. Também sentia euforia sem razão. Até experiências sensoriais eram diferentes. Cores e sabores tinham mais vida. Nessa fase, era como se eu tivesse acabado de ganhar na loteria, vivia uma felicidade extrema inexplicável. Eu adorava, me sentia invencível.

Mas, depois da euforia, a depressão extrema voltava. Essa alternância de humor era exaustiva, tirava muito de mim, pois não tinha consciência de quando cada uma das fases aconteceria. Até eu perceber que essa ‘super energia’ não era saudável, levou tempo. Procurei outra psiquiatra, que suspeitou que minha depressão era, na verdade, transtorno bipolar.

Páginas da Vida - transtorno bipolar
Dyene alerta para a subjetividade do diagnóstico de saúde mental, que ainda permite que uma parcela da população ache normal fazer piadas com doenças sérias e letais (André Joaquim/CLAUDIA)

Os remédios estabilizavam essas fases e me davam senso de controle. Era um alívio, um verdadeiro presente voltar a ser quem eu era. Ao contrário da crença popular, antidepressivo não é pílula da felicidade. Ele não faz ninguém feliz, mas tira você de um abismo incapacitante. Angústia somada à tristeza nos privam de fazer coisas simples do cotidiano, como tomar banho ou escovar os dentes.

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Além da medicação, fazia (e ainda faço) tratamento psicológico. Uma das recomendações da minha terapeuta foi a de manter um diário, o que me ajudou muito a processar as emoções. O diário era meu confidente. Vários textos guardei só para mim.

Inclusive, só minha família e amigos mais próximos sabiam da minha condição. Como eu poderia confessar que aquela pessoa alegre e feliz tinha um transtorno psiquiátrico grave? Não combinava comigo e eu queria manter a doce ilusão de que tudo estava bem. Por um tempo, consegui esconder, pois morava nos Estados Unidos e a maioria dos meus amigos, no Brasil.

Estudei a fundo tudo sobre transtorno bipolar e investi na minha recuperação: não perdia uma consulta psiquiátrica e psicológica e seguia o tratamento à risca. Também adotei hábitos saudáveis, como a meditação, exercício e alimentação mediterrânea.

“Consegui ser verdadeira comigo mesma e isso me trouxe grande alívio e leveza”

Quando voltei ao Brasil, em 2010, já estava estabilizada e logo percebi que mantinha em segredo uma fase de grande importância em minha vida.

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Num processo de autoconhecimento, vi que me sentia uma impostora. Tanto sucesso profissional e as cicatrizes da batalha da vida escondidas com muito afinco. Às vezes, engolia seco quando escutava piadas sobre transtornos mentais do tipo: ‘Meu chefe é bipolar, uma hora está bravo; outra hora está calmo’ ou ‘Minha apresentação está esquizofrênica, ela não faz sentido’. Percebi que não usava minha voz para falar por tanta gente que vivia em sofrimento com medo de ser descoberta, discriminada ou marginalizada.

Como profissional de marketing, percebi que doenças mentais têm um problema de imagem. Você já viu alguém fazendo piada com câncer? Ou com diabetes? As pessoas precisam entender que transtornos mentais são doenças que podem ser letais. A cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Os transtornos mentais são as principais causas.

Concluí que a minha omissão era um desserviço social. Poderia usar minha voz para demonstrar que o tratamento era o caminho para a recuperação. No Brasil, ainda é tabu se consultar com um psiquiatra ou tomar remédios, o que para muitos significa estabilização do humor e, consequentemente, mais bem-estar. A falta deles pode aumentar a probabilidade de um suicídio.

Vi que poderia usar minha trajetória como uma referência positiva. Na mídia e nos filmes, as pessoas com transtornos mentais aparecem quando estão em surto, sem tratamento. A ideia que fica é que esse será o destino de todos com distúrbios psiquiátricos. Ao ver essas representações, sentia-me sem qualquer esperança, não via saída. Representatividade importa também para transtornos mentais.

Mas a verdade é que eu estava calada ainda. Sabia o risco de assumir publicamente meu diagnóstico em uma sociedade com tantos estigmas ligados à saúde mental.

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páginas da vida - transtorno bipolar
O apoio da mãe, Angela Renner, e do marido, Hugo Fernando Galantini, foi fundamental no processo de recuperação. O carinho da cachorra Luna também ajudava nos momentos mais difíceis na depressão (Fotos: Filipe Medeiros (com a mãe e o marido); acervo pessoal (com a cachorra Luna)/CLAUDIA)

Tornar minha história pública significaria sair da zona de conforto da minha privacidade e expor uma vulnerabilidade tão bem guardada. Ao mesmo tempo, estava incomodada, pois deixava de ajudar pessoas que não conseguiam vislumbrar uma vida saudável.

Eu já tinha sido essa figura, mas os grupos de apoio que frequentei me deram a oportunidade de ver pessoas estabilizadas. Isso fazia toda a diferença, me permitia enxergar um futuro feliz e renovava meu ânimo para continuar o tratamento.

Resgatei meu diário e o reorganizei em forma de livro. Resolvi publicá-lo com o nome de Vencendo a Mente. Escolhi colocar o verbo no gerúndio porque confrontar os medos e as angústias mentais é um exercício diário. Com medo de ser demitida, pensei inicialmente em publicar o livro de forma anônima. Até que uma amiga do trabalho me disse: ‘Se a empresa demitir você por ter um transtorno, você quer mesmo trabalhar nessa empresa?’.

Acabei publicando em 2017 com meu nome e, rapidamente, o livro se tornou conhecido. Consegui ser verdadeira comigo mesma e isso me trouxe grande alívio e leveza. Em meu trabalho, fui tão bem acolhida que passei a liderar um time de diversidade.

Se um dia minha doença me deixou sem perspectivas, contar minha história me proporcionou a realização de um grande sonho. Em 2020, palestrei num TEDx. Atingi um público ainda maior. Recebi uma enxurrada de mensagens de pacientes, por contar suas histórias; da comunidade médica, por demonstrar a estabilização; e de familiares de pacientes, por demonstrar uma esperança que eles não tinham.

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Acredito que todo mundo tem uma história impactante e que há sempre algo a aprender com a experiência. Só não imaginava que minha trajetória pudesse ajudar tanta gente. Sinto que enquanto houver estigma e preconceito contra doenças mentais, meu trabalho não estará concluído.”

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