Nem Rita Lobo, nem Bela Gil: e se cada um se alimentar como quer?
Polêmica no Twitter gera debate importante: será que estamos racionalizando demais nossas escolhas alimentares - e opinando demais sobre as dos outros?
Na semana passada, uma série de tuítes da chef e apresentadora Rita Lobo deu o que falar na internet. Neles, a ex-modelo criticava a obsessão cada dia mais frequente a respeito dos nutrientes e dos benefícios dos alimentos que ingerimos.
“Trate seu distúrbio alimentar”, ela chegou a afirmar, levando as pessoas a se dividirem e discutirem sobre o assunto nas redes sociais, debatendo se as afirmações estavam, afinal de contas, corretas ou não. Muitos chegaram inclusive a cogitar que as “patadas” representassem indiretas a uma colega de profissão (e de emissora), Bela Gil. “É uma polêmica que não existe”, defendeu a cozinheira em entrevista à Jovem Pan. Não se trata, portanto, de picuinha entre as duas. Mas a polêmica veio em boa hora, e nos faz questionar se nossos “cardápios ideais” não deveriam vir de nós mesmos.
“Você pode comer o que quiser, a não ser que tenha alguma restrição clínica: alergia, doença renal, diabetes”, explica Paola Altheia, a nutricionista comportamental e autora do blog ‘Não Sou Exposição’. “Ao dizer isso, não estou defendendo uma ‘orgia gastronômica’: a gente tem que administrar nossa alimentação com lucidez”.
“E o que seria isso?”, você pode se perguntar. A gente explica.
Segundo André Ehrlich, psicanalista e presidente da Biblioteca Freudiana de Curitiba, a comida é uma das diversas maneiras que encontramos para nos identificar com nós mesmos e com os outros.
Em seu consultório, a nutricionista Paola procura ajudar seus pacientes a descobrir o que a maneira na qual cada um se alimenta tem a dizer sobre eles mesmos – e, acima de tudo, como o próprio corpo é, muitas vezes, capaz de nos indicar o que comer. “Geralmente as pessoas ficam reféns do cardápio, do relógio, do nutricionista… Não têm autonomia: é como andar de bicicleta com rodinha“, ela diz. “Eu quero ajudá-las a tirar a rodinha, a escolherem sua comida. Não entrego cardápio, quero que elas andem com as próprias pernas”.
Ao tuitar, Rita Lobo não foi nem contra a Bela Gil nem contra a noção de “comer saudável”. Muito pelo contrário: ela estava se referindo ao que Paola chama de ‘terrorismo alimentar’.
“No meu entendimento, comer errado é tomar sopa com garfo”, brinca a nutricionista. “O terrorismo nutricional causa danos no comportamento alimentar dos indivíduos, fazendo com que as pessoas fiquem aflitas, desesperadas – sintam culpa, como se comer fosse uma falha moral”.
Pode até parecer exagero, mas não é. Para muitas pessoas, a culpa é tão grande que as impede, muitas vezes, de comer – gerando jejuns intermitentes e até o abandono de grande parte dos alimentos na dieta. Quem sofre destes sintomas, aliás, pode ser vítima de um distúrbio recém “catalogado” pelo médico norte-americano Steven Bratman, a ortorexia nervosa. Trata-se de uma perigosa obsessão pela “alimentação saudável”.
“A super saúde é uma falácia e a aparência impecável também”, opina André Ehrlich. “São maneiras de negar que sempre haverá alguma falha”.
No entanto, com as dificuldades e a vontade de mudar, somente quem sofre dessas e de outras questões alimentares é capaz de fazer alguma coisa – seja no consultório de um psicanalista, psicólogo ou de um nutricionista. “E não existe ninguém que vá melhorar de vida em duas semanas, um mês: uma mudança para a vida toda tem de ser um trabalho criterioso”, pontua Paola.
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“Nós temos uma relação essencialmente humana com a comida”, diz André. “Existe a fome, mas, em geral, quando pensamos em comer, pensamos em comer algo específico – e esse algo específico é atravessado pelo discurso social“.
De acordo com o psicanalista, a força da tradição familiar que existia antigamente é algo que vem se perdendo ao longo dos anos – e essa mudança se faz presente também quando o assunto é comida. “Hoje, tudo que aprendemos em casa pode ser questionado e você pode se identificar com vários discursos que aparecem ao longo da vida”, explica.
Há quem parta das regras da família, porém, rumo a horizontes novos – e igualmente dogmáticos. André enxerga uma tendência a esse tipo de pensamento nos dias de hoje. As redes sociais, que também contribuem com dificuldades alimentares por meio do compartilhamento de fotos de refeições, podem fortalecer a noção de que há um certo e um errado sobre muitos temas, mas também sobre a comida.
Mas e se, no fim das contas, cada um se alimentar como bem entender?