Estas mulheres abandonaram de vez a depilação
Para abraçarem o autoconhecimento e a liberdade de seus corpos, elas abriram mão da depilação, arrancando pela raiz, as expectativas alheias
“Existem apenas duas certezas nesta vida: a morte e os impostos.” Costuma-se atribuir essa famosa frase ao cientista e escritor norte-americano Benjamin Franklin. Fosse ele mulher, poderia ter acrescentado mais um item à lista: o julgamento alheio sobre seu corpo. Toda mulher já sentiu na pele as expectativas da sociedade sobre sua aparência. Uma hora, é algo sobre “estar ficando velha demais”, na outra, sobre “ter ganhado peso e não estar mais se cuidando”. Até a nossa musa da capa, Paolla Oliveira, passa por isso. A lista é interminável e incessante. Nesse contexto, uma das maiores pressões a que mulheres são submetidas todos os dias — e especialmente no verão, com os corpos à mostra — é a necessidade de estar sempre “lisinha”, com a depilação em dia.
Caso contrário, são vistas como desleixadas ou até mesmo pouco atraentes. “Sei que meu corpo está fora do que é esperado de um corpo padrão”, diz Júlia Mota, mentora holística que há quase 3 anos deu adeus aos métodos de depilação para se conectar com o seu bem-estar e sua autoestima.
Portadora da síndrome do ovário policístico, ou SOP, Júlia lembra que tinha 13 anos quando entendeu por que o seu corpo possuía as características que carregava.
“Eu era muito nova quando comecei a apresentar os sintomas da SOP, como o aumento dos hormônios que são tidos como masculinos. Uma das coisas que esses hormônios podem causar é justamente o aumento dos pelos em diversas regiões do corpo. Então eu era uma pré-adolescente que tinha uma quantidade de pelos completamente diferente das outras meninas”, relembra hoje, aos 22 anos.
Para além do diagnóstico de SOP, Júlia se viu diante de um outro incômodo: a depilação. “Eu tentei diversos métodos e todos eram torturantes e problemáticos. Já cheguei a sair de sessões com o corpo inteiro sangrando”, conta a jovem.
Foi durante uma conversa com a sua irmã mais nova, na época com apenas 6 anos, que ela decidiu não se importar mais com os pelos e tampouco com as expectativas alheias.
“Ela veio comigo na depilação e notou que eu estava sangrando e chorando bastante. Ela simplesmente olhou e perguntou por que eu estava fazendo aquilo com o meu corpo. Ou seja, uma menina de 6 anos conseguiu olhar para aquela situação com humanidade, como se estivesse pedindo para que aquele também não fosse o seu futuro. A partir desse dia, decidi não me causar mais esse sofrimento”, declara.
Abandonar a depilação ainda é tabu
Engana-se quem acredita que sofrer para tirar pelos é coisa de mulher moderna. Há relatos da prática em diversas culturas milenares ao longo da história.
“A depilação como experiência feminina é muito antiga. É possível encontrar registros na história desde os egípcios, passando pelos povos orientais e ocidentais. Mas não era uma depilação tão severa como hoje em dia”, conta a professora do curso de pós-graduação em História e Psicologia Clínica da PUC-SP, Denise Sant´Anna Bernuzzi.
“Foi a partir do século 20 que ela se tornou sinônimo de higiene. Por volta de 1920, registros de um comportamento aversivo aos pelos se tornaram mais recorrentes. Isto está diretamente ligado à ideia de que um corpo liso é higiênico. Esse é o grande obstáculo da resistência à depilação, pois as mulheres que resistem à prática não são apenas vistas como ‘feias’, mas como algo que é ainda mais difícil de assumir: supostamente ‘sujas‘”, completa a docente que também é autora do livro A História da Beleza no Brasil (2014).
Mas a jornada pela higienização dos corpos femininos tem uma camada ainda mais cabeluda (com perdão do trocadilho). Nem todos os corpos são impactados da mesma forma. “No Brasil, temos um grave problema com a sujeira. Esse é um imaginário vindo de uma sociedade regida por quatro séculos de escravidão, e que carrega consigo a ideia de que a sujeira pode estar associado ao escuro. Aqui tudo aquilo que se esconde e permanece nas sombras foi caracterizado como sujo”, completa Denise.
A opção por não depilar: nadando contra a corrente
“Eu me lembro da primeira vez que a minha mãe me levou para a depilação. Era um daqueles lugares que tinha muitos cômodos divididos por biombos, um casarão de depilação. Lembro de ter achado horrível a experiência porque era minha intimidade no meio daquela fábrica de depilação. Eu tinha pelos grandes e quando eram arrancados, sempre inflamavam e doíam bastante”, conta a jornalista e escritora Lívia Aguiar, de 36 anos.
Depois desse início traumático, Lívia partiu para o laser, embora os pelos não demorassem a crescer novamente. Foi durante um inverno intenso em São Paulo que ela foi deixando de praticar a depilação.
“Eu tinha por volta de 28 anos e estava em um momento profissional em que me sentia com mais liberdade na forma de me apresentar. Hoje cheguei num ponto em que sou livre para ser o que eu quiser ser, andar com o meu corpo como ele quiser, mesmo com pelos”, completa.
Abandonar uma insegurança pessoal pode significar abrir caminhos para mais autoconhecimento e identificação feminina. É por meio do mesmo processo que podemos decidir por nós mesmas o que é bem-estar e beleza, e (tentar) parar de se importar com a opinião dos outros. Em outras palavras: escolher arrancar pela raiz as expectativas alheias, ou ao menos tentar.
“Existe uma tendência crescente hoje que é a ideia de assumir quem você é. Claro que sabemos que essa dinâmica demanda horas de trabalho na frente do espelho, mas há um prazer em mostrar que você teve a coragem de assumir o diferente. Esse prazer talvez faça com que aumente o número de meninas e mulheres que decidem não arrancar mais os seus pelos”, completa a professora Denise.
Aqui vale lembrar que parar de se depilar não leva a um caminho imediato de aceitação — e que está tudo bem optar por tirar os pelos, claro. A questão é entender que você pode ter a liberdade de portar o seu corpo como quiser na rua, independentemente de quem achar certo ou errado.
“Acolher essa aceitação dentro de mim é uma junção de sentimentos muito forte. É como ser uma ponta de lança para essas lutas, onde o que está na linha de frente é o meu corpo”, diz Júlia, emocionada ao comentar mensagens de acolhimento que recebe de outras meninas e mulheres em suas redes sociais. “Se conhecer para se amar radicalmente vale a pena e é isso que te leva à liberdade.”