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Precisamos falar sobre os casos crescentes de HIV entre mulheres cisgênero

Apesar de a maioria das pessoas que vivem com o vírus serem homens, em 2019, 48% das novas infecções ao redor do mundo ocorreram em mulheres

Por Maria Clara Serpa (colaboradora)
Atualizado em 1 dez 2020, 18h47 - Publicado em 1 dez 2020, 11h33

Em 2017, Priscila Obaci, de 36 anos, engravidou de seu segundo filho. Como a primeira gravidez havia sido tranquila, ela nem se preocupou muito ao descobrir que estava grávida novamente. Porém, a educadora foi surpreendida com um diagnóstico logo na primeira consulta de seu pré-natal. O exame rápido de HIV, que é feito em todas as gestantes, deu positivo.

“Fui surpreendida, mas a enfermeira disse que poderia ser um falso positivo. Repeti o exame e o resultado se confirmou, eu realmente estava vivendo com o HIV. A médica me explicou que, provavelmente, a infecção era recente, porque o vírus ainda estava se multiplicando muito”, conta Priscila. Logo no dia seguinte, ela iniciou o tratamento com os antirretrovirais, mais conhecidos como coquetel, de forma gratuita no Centro de Referência e Treinamento de ISTs.

O caso de Priscila é mais comum do que se imagina. Segundo o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde de 2019, entre 2009 e 2019 foram notificadas 125.144 gestantes infectadas com HIV, das quais 8.621 no ano de 2018. Esse foi o maior número desde 2008. Em 2019, foram 4.482. Nos últimos 10 anos, houve um aumento de 38% dos casos em grávidas, muito provavelmente devido à ampliação do diagnóstico no pré-natal, como aconteceu com Priscila.

Se descoberta no início da gestação, a infecção pode não causar complicações e o bebê pode nascer negativo para o vírus. Em três meses, a educadora Priscila já estava indetectável – quando a quantidade de vírus no corpo é tão baixa que não é detectável nos exames – e conseguiu ter um parto normal que, segundo sua médica, era mais seguro para o bebê. “Ele nasceu com uma pequena carga viral, que era minha. No começo desse ano ele fez o último exame, que deu não reagente. Durante a gravidez, segurei muito minhas emoções por medo de alguma coisa acontecer com ele, mas assim que ele nasceu e eu vi que estava tudo bem, fiquei mais tranquila”, relata.

Além das grávidas, as mulheres cisgênero – isto é, aquelas cujo gênero está em consonância com o sexo feminino e o gênero atribuído ao nascer – heterossexuais como um todo representam uma grande parcela das pessoas vivendo com HIV atualmente. Se até algum tempo atrás o vírus e a AIDS eram vistas apenas como “coisa de homem gay”, isso mudou. Porém, ainda assim, poucas são as campanhas de prevenção que englobam as mulheres e o preconceito é muito grande, já que são vistas como promíscuas e sujas. Segundo dados da UNAIDS, o programa das Nações Unidas criado em 1996 com função de criar soluções e ajudar nações no combate à AIDS, em 2019, 48% das novas infecções ocorreram em mulheres. A cada semana, 5.500 meninas entre 15 e 24 anos contraem o vírus ao redor do mundo.

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No Brasil, os dados são um pouco diferentes. Os homens ainda são a maioria dos que vivem com o vírus e as mulheres cis representam 31% das infecções de 2007 a junho de 2019. No último ano, o grupo de mulheres de 25 a 39 anos foi o mais afetado pelo HIV, e as mais afetadas pela AIDS foram as mulheres de 35 a 39 anos. Há também um recorte de cor: as pretas e pardas representam 53% dos casos em mulheres nesse período de tempo. A faixa etária dos 60 anos é a mais preocupante, já que de 2007 a 2017 o número de mulheres vivendo com HIV cresceu sete vezes.

Apesar disso, há uma tendência de queda nos casos, especialmente de AIDS, já que no Brasil o tratamento com os antirretrovirais é distribuído de forma gratuita pelo SUS, além dos métodos de prevenção combinada, como a PrEP – profilaxia pré-exposição – e a PEP – profilaxia pós-exposição. O modelo brasileiro de prevenção e assistência aos pacientes com HIV é apontado como um dos melhores do mundo pela UNAIDS.

O aumento de casos entre as heterossexuais e as bissexuais cisgênero, em parte, se deve à baixa testagem de seus parceiros, os homens heterossexuais cisgênero.

Mas os casos de AIDS estão diminuindo, muito provavelmente devido a maior testagem e ao tratamento precoce do vírus. Em 2018, foram registrados 11 mil casos em mulheres e, em 2019, cerca de 4.700. Um dos anos com mais notificações de casos da doença foi 2012, com mais de 15 mil novas infecções. Marina Vergueiro descobriu que estava convivendo com o HIV nesse ano, quando ficou muito doente.

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A escritora e poeta foi internada no hospital com uma pneumocistose e apenas 10 dias depois fez o exame de HIV, que deu positivo. Ela já estava com AIDS e a doença nos pulmões era uma infecção oportunista, que atinge o corpo quando a imunidade está muito baixa. Há pessoas que vivem com o HIV, mas nunca chegam a ter AIDS, que é uma doença crônica que danifica o sistema imunológico. Quem começa a tomar os antirretrovirais para o HIV não desenvolve a doença.

“Como sou jornalista e curiosa, eu sabia tudo sobre a doença. Cresci vendo artistas que eu amava, como Cazuza e Freddie Mercury, morrendo de AIDS, então durante toda a minha vida eu morria de medo dela. Eu cheguei a cogitar que poderia ter pego algumas vezes, mas nunca fiz o exame por medo. Hoje falo para as pessoas que todo mundo tem que se testar, porque nós nunca achamos que pode acontecer com a gente. Saúde sexual também é saúde. Se eu tivesse feito os exames antes, não precisaria ter descoberto dessa maneira, já tão doente”, explica Marina.

Pouco mais de dois meses depois, ela já estava indetectável, porém, foram alguns anos até que se aceitasse e conseguisse falar sobre o assunto abertamente.

Estigma

Tanto Priscila quando Marina receberam apoio dos familiares e amigos quando descobriram estar vivendo com HIV. No entanto, muita gente não tem a mesma sorte. Segundo o Índice de Estigma feito pela UNAIDS, no Brasil em 2019, 50% das pessoas que vivem com HIV já ouviram comentários preconceituosos e mais de 20% já foram rejeitados em empregos por isso.

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“Sofri muito com o que estava dentro de mim. Tive uma rede de apoio incrível, que foi essencial para meu tratamento, mas o preconceito estava dentro de mim. Tinha medo de falar sobre o HIV e ser rejeitada, mas procurei todos os meus ex-parceiros e os avisei. Apenas dois deles foram mais hostis”, conta Marina.

A escritora estava prestes a lançar seu livro Exposta quando recebeu o diagnóstico e, por isso, desistiu. Os poemas eram pessoais, mas ela ainda não tinha coragem de falar sobre a AIDS e o HIV. “Não tinha como eu escrever um livro com esse nome sem abordar essa parte da minha vida. Esperei sete anos para conseguir escrever e, enfim, lançar o livro”, explica. Exposta (compre aqui) já está à venda e, além do HIV, conta com poesias sobre gordofobia e sexualidade.

Priscila também buscou na arte uma maneira de se aceitar. Como já tinha convivido com uma tia que teve AIDS, ela tinha um bom conhecimento sobre o HIV e sua família lidou bem. Em seu segundo livro, Poesias Pós-Parto (compre aqui), lançado neste ano, ela fala sobre a convivência com o vírus.

“Minha mãe conta que teve muito medo, já que minha tia morreu nos anos 80, mas, depois de terapia, hoje ela lida bem e diz que tem orgulho de mim. Como minha descoberta foi recente e eu me separei há pouco tempo, ainda não vivi muitas coisas. A parte de relacionamentos vivendo HIV eu ainda não posso opinar muito, mas sei que vou encontrar pessoas que vão lidar bem e muitas outras que vão ter preconceito. Como mulher preta, periférica e do candomblé, lidei com preconceito minha vida inteira. Essa é só mais uma parte”, diz Priscila

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Vida normal

Com o coquetel de medicamentos, as pessoas que vivem com HIV podem levar uma vida completamente normal. Para Priscila, sua rotina é completamente comum. Trabalha, dá aulas e vive normalmente. A única coisa que a afetou foi não poder amamentar o filho quando ele nasceu, já que a prática não é autorizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “O pior problema do HIV é o vírus social, ou seja, como a sociedade lida com os soropositivos. Fora isso, com tratamento, é tudo normal”, afirma.

“Tomo duas pílulas por dia, como qualquer outra pessoa com uma doença crônica. Fora isso, minha vida é corriqueira. Ainda assim, o preconceito é muito”, relata Marina.

Prevenção

Desde o início do governo Bolsonaro, as campanhas de prevenção às ISTs perderam força. As últimas que envolviam o HIV e a AIDS, por exemplo, excluíram completamente os homens que fazem sexo com outros homens, que ainda são os mais atingidos pelo vírus. As mulheres também nunca são mencionadas. É necessário conscientizar a população como um todo e expor todas as possibilidades de prevenção e tratamento, não só a camisinha masculina.

Poucas pessoas sabem, por exemplo, que desde 2015 há a possibilidade de o pai de um filho de uma mulher grávida faça pré-natal, com testagens de ISTs. Essa informação é muito pouco disseminada. “As informações não chegam na população. O vírus atinge a todos e a todas, mas com a falta de informação e o país estruturalmente racista, classista e homofóbico que vivemos, a população não entende isso. As pessoas não têm medo de transar sem camisinha com um estranho, mas têm medo de se relacionar com alguém que está indetectável”, aponta Priscila.

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“Costumo dizer que a AIDS é uma doença do amor, já que em boa parte dos casos ela é transmitida em um momento de amor. Como mulher bissexual, comecei a pesquisar sobre maneiras de proteger as minhas parceiras, e não há nada sobre isso, sequer literatura médica. Os homens gays já estão bem mais acostumados com isso, se cuidam mais, tomam a PrEP e a PEP, mas nada se fala sobre saúde sexual entre mulheres. Quero usar meu lugar de fala para ajudar as mulheres, que são impedidas pelo machismo de cuidar da própria saúde – quantas mulheres transam sem camisinha porque o parceiro insiste ou tira no meio da relação? Precisamos falar abertamente sobre as ISTs, e não só sobre o HIV. O HPV, por exemplo, é muito comum e perigoso entre as mulheres. Conversar com os parceiros e parceiras sobre isso é uma demonstração de amor e carinho, que não deve estar restrita àqueles com quem temos relacionamentos mais sérios, mas também às relações casuais”, finaliza Marina.

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