Em busca do sono: o aumento perigoso do consumo de remédios para dormir
Muita gente está recorrendo às farmácias para tratar problemas de insônia, condição que se agravou com a pandemia da Covid-19
Os brasileiros já estavam sob alta tensão e insones quando a pandemia chegou ao país. Um levantamento do Ibope havia apontado que 98% da população dizia estar cansada – e a sensação de exaustão era mais intensa entre jovens de 20 a 29 anos. Na hora de ir para a cama, o problema ficava evidente. Dados da Associação Brasileira do Sono (ABS) divulgados no início do ano indicavam que 45% das pessoas se queixavam de dormir mal. Somaram-se à equação a chegada de um vírus altamente contagioso, sobre o qual pouco se sabia, o isolamento social e o aumento do risco de perda de emprego. “Nossas rotinas foram totalmente alteradas e o problema se agravou”, constata a cientista Adriane Rosa, professora de farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Adriane integrou o time que aplicou uma pesquisa no Brasil e na Espanha para avaliar o impacto da pandemia no estilo de vida das populações e revelou um cenário preocupante. Cerca de 40% das 18 mil pessoas que responderam ao questionário no Brasil disseram que estão dormindo pior e 35% admitiram não estar mais conseguindo controlar o stress. Houve também mudança na dieta, aumento do consumo de álcool e da sensação de ansiedade e depressão, fatores com potencial para afetar as horas na cama. “É um marco na nossa geração. Estamos vivendo uma situação traumática, que simula um cenário de guerra”, conclui.
Outro estudo nacional, realizado entre abril e maio, analisou as respostas de mais de 2,6 mil pessoas. Dados preliminares apontam para uma taxa de 49% com sono de má qualidade. As mulheres são as que mais sofrem. Entre elas, o índice chegava aos 52% ante 41% dos homens. “Para ter uma ideia, a prevalência da insônia, em condições normais, costuma oscilar entre 10% e 15% da população mundial”, afirma o neurologista e coordenador do estudo Paulo Afonso Mei, professor da Faculdade São Leopoldo Mandic, de Campinas (SP). No levantamento, a parcela feminina também reportou estar mais ansiosa (61%) e deprimida (49%). “São índices que assustam porque dormir mal é fator de risco para outras doenças”, alerta. Entre condições que a insônia agrava estão a obesidade, as doenças cardio e neurovasculares, como o infarto e o AVC, e as neurodegenerativas, como o Alzheimer.
45% dos brasileiros se queixam de dormir mal e 98% afirmam estar cansados
O desespero causado por essa epidemia da insônia, piorada pela crise do novo coronavírus, e sem prazo para acabar, leva a um segundo problema ainda mais grave: o abuso de remédios para dormir, as chamadas drogas Z. As vendas do zolpidem, o mais famoso desses medicamentos, tiveram um aumento de 560% entre 2011 e 2018 no país, segundo dados da Anvisa.
Indicado para o tratamento da insônia ocasional ou crônica, o zolpidem entrou no mercado americano em 1992, mas foi apenas na virada do milênio que sua comercialização explodiu e ele passou a ser usado como substituto dos benzodiazepínicos (que inclui o clonazepam, ou Rivotril) e ansiolíticos, até então os preferidos dos médicos para a indução do sono – no Brasil, a droga chegou às farmácias no início dos anos 2000. “Boa parte dos médicos recomendava antes ansiolíticos para condições relacionadas à ansiedade e insônia. Houve então a migração dos remédios de tarja preta para uma medicação mais seletiva, que só age no sono”, observa a neurologista Andrea Bacelar, presidente da ABS. Ela acredita que, recentemente, mais pessoas têm se preocupado com a qualidade do sono e o impacto disso no dia a dia. “Aumentou a população em busca de aconselhamento e tratamento”, afirma.
A conscientização, porém, tomou um caminho negativo. Com a escalada do uso das drogas Z, surgiram os primeiros indícios de riscos. São perigos que, até pouco tempo atrás, eram desconhecidos pelos médicos e diferentes dos relacionados aos remédios de tarja preta. Começaram a pipocar relatos bizarros de efeitos do zolpidem, como o publicado em um artigo do Journal of Clinical Sleep Medicine, em 2009. Nele, uma dupla de pesquisadores da Universidade de Louisiana, nos Estados Unidos, descreve o caso de uma americana que passou a tomar 10 miligramas de zolpidem aos 44 anos para tratar uma insônia ocasional. Com poucas semanas de uso, uma hora após adormecer, a paciente se levantava da cama, caminhava pela casa e assaltava a geladeira. Uma vez saiu, pegou o carro e dirigiu dormindo. No dia seguinte, não se lembrava de nada. O marido dela, que detalhou os comportamentos estranhos aos médicos, disse que a mulher parecia estar hipnotizada. A estudante paraibana Cíntia*, 23 anos, conhece bem esses efeitos. Ela enviava mensagens desconexas por celular para o namorado durante o sono à base de zolpidem. “Ele me mostrava no dia seguinte, mas eu não me lembrava de ter mandado”, conta. Cíntia iniciara o uso em 2016, aos 20 anos, após um episódio que lhe gerou stress pós-traumático. O remédio surtiu efeito imediato. “Quando comecei a tomar, por orientação de um psiquiatra, fazia dois dias que não dormia. Funcionou na hora”, recorda. Cíntia, então, passou a fazer uso diário sem perceber que estava criando dependência. Só foi notar três anos depois, quando viajou para visitar o namorado na Europa. Ia ficar um mês fora e tinha levado uma caixa com 20 comprimidos. Ao ver que restavam apenas três, ela se desesperou. “Achei que não iria mais dormir. Chorava, não conseguia respirar”, conta. Cíntia ainda enfrenta o tratamento contra o vício. “Eu abandonei o zolpidem, mas sigo tomando remédios para pegar no sono, como a melatonina”, diz.
Medicamentos como o zolpidem têm ação sedativa no sistema nervoso central. Eles “apagam” o cérebro – é por isso que são classificados como hipnóticos. Na Austrália, em 2008, o remédio ganhou as manchetes quando uma filósofa de 27 anos morreu após um episódio de sonambulismo. A jovem, que à época estava a poucas semanas de defender sua tese de doutorado, usava o remédio havia oito meses para tratar a insônia. Na noite de sua morte, ela se levantou do computador em que trabalhava e dirigiu-se, a pé e descalça, até uma ponte. Ao tentar escalar a estrutura, caiu na rodovia. A necrópsia concluiu que ela havia consumido uma pílula momentos antes da morte. As gravações de câmeras públicas atestaram o estado de sonambulismo. Depois disso, o governo do país determinou que as bulas do zolpidem mencionassem a ocorrência de “comportamentos bizarros”, como dirigir enquanto dorme.
Na visão dos médicos, os acidentes são justamente a consequência mais preocupante dessas pílulas sedativas. “Os efeitos residuais de sonolência e o prejuízo à atenção aumentam o risco tanto de acidentes de trânsito quanto de trabalho”, alerta o psiquiatra Felipe Gutierrez Carvalho, pesquisador do Laboratório de Cronobiologia e Sono do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Para idosos, a redução de reflexos pode levar a quedas fatais – elas são a terceira causa de morte entre quem tem mais de 65 anos. Esse risco levou o FDA, o equivalente à Anvisa nos Estados Unidos, a acrescentar à bula do zolpidem mais um alerta, dessa vez sobre o impacto da medicação nos reflexos e na atenção. Recentemente, outro fantasma apareceu. “Começaram a surgir relatos ligando o uso de medicações para insônia a quadros de demência, embora ainda não se possa afirmar que exista uma relação de causa e efeito”, detalha o médico. O caso está em aberto, ainda dependendo de estudos.
Via mais natural
Para substituir os remédios, muitos pacientes têm recorrido à melatonina, o hormônio do sono que é sintetizado e vendido em cápsulas. Feita em farmácias de manipulação, a pílula teve a comercialização autorizada pela Anvisa há três anos e passou a ser oferecida como uma forma mais natural para tratar a insônia. Ledo engano. “Como todo hormônio, o uso inadvertido não é seguro e pode levar a graves problemas de saúde, como o comprometimento da imunidade e alterações metabólicas”, explica Carvalho. Além de que, segundo ele, a melatonina não tem benefícios cientificamente comprovados para quadros de insônia em geral. O que a fez se tornar a alternativa considerada “benigna” é que ela mimetiza a forma como adormecemos. A substância funciona como um indutor do sono, sendo ativada e desativada conforme a absorção da luz pela retina. Quando escurece, a retina envia sinais ao cérebro, que aciona a liberação de melatonina e provoca o sono. No ciclo natural, a melatonina se eleva nas primeiras horas de sono, enquanto os níveis de cortisol, conhecido como o hormônio do stress, são reduzidos. Na segunda parte da noite, mais próxima ao despertar, o ciclo se inverte. A melatonina cai e o cortisol sobe, preparando-nos para mais um dia. Quem briga com o travesseiro e só pega no sono de madrugada atrapalha o ritmo natural do corpo. “A pessoa dorme sob o efeito do cortisol, o que favorece o surgimento de uma série de doenças”, explica Sidarta Ribeiro, crítico da medicalização do sono. Esse mau hábito parece ter piorado na pandemia. “Com o confinamento, o home office se misturou à vida doméstica e desregulou o dia a dia. Agora as pessoas trabalham com mais frequência na hora de ir para a cama”, constata o neurologista Paulo Afonso.
Os especialistas sugerem realizar uma higiene do sono. O que é isso? Jantar cedo, apagar as telas, manter uma rotina regular, se exercitar, evitar bebidas alcoólicas. Para fazer as pazes com o travesseiro em meio à maior crise sanitária do século, vai ser preciso reconstruir os hábitos em novas bases. “As pessoas vão ter de buscar outras formas de autocuidado e relaxamento, já que as anteriores estavam associadas a sair de casa e confraternizar com amigos e família”, observa a cientista Adriane.
Para evitar a medicalização, os consensos europeu e norte-americano recomendam a terapia cognitivo-comportamental como primeira escolha. “É um trabalho que dura cerca de dez encontros. A pessoa faz um diário e vamos entendendo o ritmo biológico, comportamentos e crenças que afetam o sono”, explica a psicóloga Silvia Conway, diretora da ABS. Entregar-se aos braços de Morfeu, o deus alado do sono, promete recompensas. “O sono e os sonhos nos oferecem uma janela privilegiada para o autoconhecimento”, acredita Sidarta, autor de Oráculo da Noite – A História e a Ciência do Sono (Companhia das Letras). Com a rotina confinada a quatro paredes, abrir essa janela nunca foi tão importante.
*Nome trocado para preservar a identidade da entrevistada
O que falta para termos mais mulheres eleitas na política