O surpreendente pioneirismo das mulheres do Rio Grande do Norte na política
Conheça Celina Guimarães Viana, a primeira eleitora do Brasil, e Alzira Soriano, a primeira prefeita, além de outras potiguares que fizeram história
Era novembro de 1927 quando uma professora chamada Celina Guimarães Viana entraria para a história. Ela foi a primeira mulher a se registrar como eleitora no Brasil. O feito aconteceu em Mossoró, importante cidade do interior do Rio Grande do Norte, que fica a 280 quilômetros de Natal. Hoje, é o segundo município mais populoso do estado, com pouco mais de 260 mil habitantes.
Nas eleições seguintes, em 1928, outra potiguar também seria pioneira. Alzira Soriano tornou-se a primeira mulher da América Latina a ser eleita prefeita. Com cerca de 60% dos votos, ela foi empossada na cidade de Lajes, em 1929. Cenário improvável para tamanha vanguarda, a pequena Lajes fica a 128 quilômetros de Natal e atualmente conta com menos de 11,5 mil habitantes. Alzira, aliás, nasceu em uma cidade ainda menor: Jardim de Angicos, que hoje tem pouco mais de 2,6 mil habitantes. Celina, por outro lado, nasceu em Natal, mas foi radicada em Mossoró.
Em 1934, duas mulheres foram eleitas deputadas pela primeira vez no Brasil. A potiguar Maria do Céu Fernandes, nascida na cidade de Currais Novos, tornou-se a primeira mulher brasileira no posto de deputada estadual e a paulistana Carlota Pereira de Queiroz foi pioneira como deputada federal. Neste ano, o cenário político já estava bem diferente no Brasil, devido à Revolução de 1930 – como veremos a seguir.
O que levou as mulheres potiguares a serem pioneiras?
“Não é bairrismo, mas daqui saiu Nísia Floresta, a primeira feminista do Brasil. A primeira manifestação formal do feminismo no Brasil, o livro Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, saiu daqui, das mãos de Nísia Floresta, em 1832″, aponta Adriana Magalhães, juíza do Tribunal Regional Eleitoral do estado (TRE-RN) que está prestes a publicar um livro intitulado Marias: as mulheres e os espaços de poder no Rio Grande do Norte.
De fato, Nísia foi uma brasileira muito a frente de seu tempo, mostrando que há séculos as potiguares galgam espaços de pioneirismo. Nísia faleceu em 1885 e, se fosse viva, teria 100 anos na época em que a baiana Leolila Daltro fundou o bravo Partido Republicano Feminino, em 1910, ao lado de outras sufragistas.
No Brasil, as mulheres só tiveram reconhecidos o direito ao voto e a candidatura política através do Código Eleitoral, pelo Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932. Assinado por Getúlio Vargas, o decreto foi um marco da chamada República Nova.
Em 1927, porém, os estados brasileiros passaram a ter autonomia para decidir se permitiriam a participação das mulheres na vida política – tanto como eleitoras, quanto como candidatas. Em outubro daquele ano, o potiguar José Augusto Bezerra de Medeiros foi o primeiro governador a posicionar-se de maneira favorável às mulheres nesse aspecto.
Adriana aponta que outra figura importante naquele cenário foi o senador Juvenal Lamartine. “Tem uma entrevista bem interessante de Juvenal Lamartine em que ele diz que a mulher deve não só colaborar na escolha dos representantes do povo, como na elaboração da votação e das leis, já que tanto as mulheres quanto os homens têm dever de obediência. Esse discurso data de 7 de setembro de 1925. Creio que muito do que nós conquistamos é porque nós tivemos, curiosamente, o apoio masculino”.
Lamartine e Bezerra de Medeiros concorriam ao governo do Rio Grande do Norte nas eleições de 1928 e, no início da campanha, em 1927, Lamartine posicionou-se a favor das mulheres na vida política. Isso teria influenciado o oponente, que era o governador em exercício, a seguir o mesmo caminho.
Quanto ao apoio masculino para as conquistas femininas da época, a própria Celina reconheceu que não teria conseguido ser a pioneira do voto, caso não tivesse o apoio do marido, o também professor Eliseu de Oliveira Viana. “Numa entrevista, Celina, muito humildemente, disse: ‘O meu feito eu devo ao meu marido. Quando a lei foi promulgada, em 1927, meu marido foi meu principal estimulador'”. O esposo de Celina era um homem influente em Mossoró e, tanto ela quanto Eliseu dão nome a escolas da cidade hoje em dia.
Aryana Costa, professora do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e integrante da rede de pesquisadoras HuMANAS, vê as coisas de um jeito um pouco diferente. Para ela, a importância da luta coletiva das mulheres se sobrepõe às conquistas individuais e ao apoio dos homens.
“Não podemos ficar com a impressão de que são conquistas individuais. São conquistas de movimentos organizados. E essa compreensão ajuda a gente a se mobilizar politicamente hoje também. A luta é coletiva e organizada. [O direto à participação na vida política] não foi uma dádiva de homens e não foi uma exceção que alguém conseguiu em algum momento. Foi resultado de muita campanha e muita batalha”.
Na época, o voto feminino no Rio Grande do Norte foi a primeira grande vitória das sufragistas brasileiras. Naquela época, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), encabeçada pela ativista paulistana Bertha Lutz, fizeram intensas campanhas no Congresso para que deputados e senadores se tornassem simpatizantes da causa.
Com isso, se aproximaram de Juvenal Lamartine, que atuou em ambos os cargos na segunda metade dos anos 1920. Ele então veio a se tornar um dos principais apoiadores da FBPF. Em 1928, Bertha esteve no Rio Grande do Norte para mobilizar as potiguares a se registrarem como eleitoras e candidatas. E, de fato, várias mulheres do estado fizeram valer seu recém adquirido direito.
Com isso, é importante se atentar ao fato de que Celina Guimarães Viana foi a primeira mulher registrada como eleitora no Brasil, mas ela não foi a única a votar em 1928. Outras mulheres do Rio Grande do Norte – e também de Minas Gerais – participaram do pleito naquele ano. “Há mulheres que inclusive se elegeram intendentes na época, que hoje seriam vereadoras”, aponta Aryana.
De acordo com o TRE-RN, mais de 30 mulheres potiguares foram às urnas naquele ano. Também é apontado por historiadores que Celina acabou sendo registrada com mais rapidez como eleitora por ser casada. “Mesmo no Código Eleitoral de 1932 ainda havia esses entraves. Mulheres solteiras e viúvas precisavam ter renda e as casadas precisavam da permissão do marido. Apenas na Constituição de 1934 isso é incorporado sem distinção, mas permanece o critério de ser alfabetizada”, explica Aryana, chamando a atenção para o fato de que a conquista da participação das mulheres na vida política deixava de fora muita gente naquela época.
Tanto Celina quanto Alzira Soriano faziam parte de famílias tradicionais. “O pai de Alzira era um coronel da cidade de Angicos, chegou a ser prefeito. E ela era casada com um rapaz que se formou em direito. Se eu não me engano, ele era promotor. Ela circulava no meio político”, continua Aryana. Segundo a juíza Adriana, Alzira também tinha contato com Bertha Lutz e foi ela quem a estimulou a se candidatar como prefeita.
O mandato de Alzira Soriano
É muito surpreendente pensar que Alzira tornou-se prefeita numa época em que a grande maioria das mulheres sequer podiam votar no Brasil. Ela foi eleita com 60% dos votos, apesar de ser muito atacada por conta de seu “espírito livre” – como define Adriana Magalhães. E, por mais que ela fizesse parte de uma família privilegiada, não teve uma trajetória fácil.
Alzira ficou viúva aos 22 anos, com quatro filhos para criar. Mesmo assim, nunca casou-se novamente e, na época em que o marido morreu, voltou a morar na fazenda do pai. Muita gente não via isso com bons olhos, por mais que ela tenha sido eleita por voto popular. “O oponente dela se sentiu tão humilhado, tão destruído e tão desgraçado pelo fato de ter sido derrotado nas urnas por uma mulher, que ele deixou não só a cidade de Lajes, ele deixou o estado”, conta Adriana.
Mas o sumiço do oponente rancoroso não trouxe paz para a prefeita. “Ela recebia muitas críticas e era até comparada a prostitutas, porque era livre, falava muito, se metia com homens. Há uma narrativa de que ela, andando pelas ruas de Lajes, foi criticada num tom de voz mais alto, por um determinado cidadão, e ela revidou com um murro na cara do senhor. Chegou a quebrar o óculos dele. Era uma mulher de muita fibra”, conta a juíza.
Infelizmente, Alzira não cumpriu todo o seu mantado, por conta da Revolução de 1930. Ela chegou a ser convidada por Getúlio Vargas para tornar-se interventora e, assim, manter-se no poder. Recusou a proposta e só voltou à vida política em 1947, como vereadora.
Segundo conta a professora Aryana, um dos maiores desafetos de Alzira em Lajes comemorou muito o fato de ela ter sido deposta. “Ele ficava cantando músicas na calçada e desqualificando a Alzira. Quando ela foi deposta, ele ficava dizendo que o ‘tempo das mulheres vadias já tinha passado'”. Quase cem anos depois, ainda temos que lidar com homens agindo de maneira parecida, não é mesmo?
Ecos do pioneirismo na política contemporânea
Mulheres votando e sendo eleitas a partir de 1920, tendo amplo direito à vida política do Brasil em 1930. Mas somente várias décadas depois uma delas conseguiu eleger-se governadora de estado no país. A pioneira foi Roseana Sarney, do Maranhão, empossada em 1995. Antes dela, outras mulheres assumiram o cargo no Acre, Amapá e Distrito Federal, mas não por meio do voto.
E alguém adivinha qual é o único estado brasileiro a eleger três mulheres governadoras até hoje? Ele mesmo, o Rio Grande do Norte. Wilma de Faria, Rosalba Ciarlini e Fátima Bezerra assumiram o poder em 2003, 2011 e 2019, respectivamente.
Nas últimas eleições estaduais, Fátima foi a única mulher eleita governadora no Brasil. Wilma de Faria, por sua vez, foi eleita duas vezes governadora – ela e Roseane Sarney são as duas únicas mulheres brasileiras a realizarem esse feito. Também elegeu-se prefeita de Natal três vezes.
No cenário nacional, ainda são poucos os estados que algum dia elegeram mulheres governadoras: Maranhão, Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Roraima. Com exceção do Rio Grande do Norte, todos os outros estados elegeram somente uma mulher ao cargo até hoje.
Tal recorte mostra que as mulheres potiguares se sobressaem na política contemporânea e tanto Adriana quanto Aryana chamaram a atenção para isso durante as entrevistas dadas a CLAUDIA. “A valorização e o fomento da participação feminina na política daqui era muito forte outrora e continua até hoje”, afirma Adriana.
Mas a desigualdade ainda é gritante
Nomeada em 2017 como juíza do TRE-RN, Adriana teve a curiosidade de procurar dados sobre as mulheres que haviam ocupado o mesmo cargo que ela anteriormente. “Me chocou terrivelmente saber que em quase 90 anos de existência do Tribunal, eu era a terceira mulher a passar por lá”, relembra.
“Fui descobrindo como era discreta, para não dizer pífia, a participação das mulheres dentro do judiciário. Aí fui aprofundando essa pesquisa”. Hoje, Adriana se debruça sobre uma extensa pesquisa que abrange os três poderes no Rio Grande do Norte e que também colheu dados a nível nacional. Em função da pandemia, o lançamento do livro precisou ser adiado.
Ao contrário do Executivo e do Legislativo, o Judiciário não escolhe seus representantes através de voto popular e, mesmo assim, os três poderes apresentam dinâmicas parecidas em se tratando da inequidade de gênero. “A maior parte do eleitorado brasileiro é feminina e a maior parte dos estudantes do bacharelado em direito hoje é feminina. Como é que nós somos a maioria das estudantes e a maioria do eleitorado e a nossa presença nos espaços de poder ainda é tão insipiente?”, indaga a juíza.
Complementando a reflexão sobre a presença feminina na política, a professora Aryana volta a chamar a atenção para o fato de que muitas das mulheres eleitas no Rio Grande do Norte ainda fazem parte de famílias tradicionais, ligadas à política. “Tivemos Wilma de Faria e Rosalba Ciarlini e tudo mais, mas essas mulheres também pertencem a famílias políticas. A Fátima Bezerra, que é a governadora eleita hoje, ela é um dos nomes [de mulheres] que foram eleitos e não são necessariamente ligados a oligarquias políticas, a famílias tradicionais do estado”.
A professora diz que vê o cenário político avançando em termos de diversidade, mas frisa que os avanços ainda não são suficientes. “Ainda estamos para ver mulheres pretas, mulheres indígenas, mulheres trabalhadoras também ocuparem mais esses espaços. A gente agradece às pioneiras, mas queremos que [o acesso à vida política] se amplie ainda mais”.
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