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Em SP, dinheiro gasto na Lei das Drogas compraria 72 milhões de vacinas

A socióloga Julita Lemgruber propõe um novo olhar sobre o combate às drogas e sugere outros investimentos para o dinheiro público gasto nela

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
24 Maio 2021, 12h00
Julita posa para a câmera. Seu retrato sobrepõe uma foto preta e branca ao fundo da parede de sua sala
 (Julia Lego/CLAUDIA)
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No dia anterior à conversa com a socióloga Julita Lemgruber, a polícia havia feito operações nos Complexos da Maré e do Alemão, comunidades da Zona Norte do Rio de Janeiro. Um homem foi preso, três morreram baleados e um policial foi ferido.

Os vídeos gravados na ocasião registravam gritos de moradores, que tiveram carros e negócios destruídos pelos caveirões, veículos usados pela polícia militar na região. Apesar da revolta, os protestos logo arrefeceram.

Mal imaginávamos que menos de 15 dias depois, na favela do Jacarezinho, a polícia seria responsável por uma chacina. Até o fechamento da edição, eram 29 mortos – um deles era policial. Fotos publicadas mostravam rios de sangue no chão das casas invadidas e corpos espalhados. A operação, assim como todas as outras que ocorrem na cidade, fazia parte da guerra às drogas. Dessa vez, o motivo do ataque seria para evitar o aliciamento de adolescentes e jovens para atuarem no tráfico.

A narrativa da guerra às drogas não é nova; baseia-se em transformar o traficante em inimigo número um do estado, com a prerrogativa que a sua prisão (ou morte, a depender da ação da polícia) reduziria índices de criminalidade.

Desde 1970 estudando e trabalhando no setor, Julita recorre a estudos para discordar com veemência dessa teoria. Sua primeira vez em uma cadeia foi para fazer sua tese de mestrado. Depois, trabalhou na penitenciária feminina Talavera Bruce, em Bangu, e, em 1991, se tornou a primeira mulher a assumir o Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro. Também foi a primeira Ouvidora da Polícia do Rio e é coautora de A Dona das Chaves (Record), onde conta um pouco de sua experiência profissional.

Hoje, Julita é coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e está à frente da pesquisa “Drogas: Quanto Custa Proibir”. O intuito é estudar os orçamentos do Rio de Janeiro e de São Paulo para entender o verdadeiro custo da guerra às drogas – e se o investimento massivo faz sentido, ou seja, se dá resultados.

Em outra etapa, o estudo questiona: caso o dinheiro fosse direcionado a outras áreas, o que renderia? Usando um exemplo muito atual, com os 4,2 bilhões de reais usados pelo estado de São Paulo para aplicar a Lei de Drogas durante o ano de 2017, poderiam ser compradas 72 milhões de doses da vacina CoronaVac (o suficiente para vacinar 36 milhões de pessoas das 44 milhões do estado).

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Outras simulações focadas em educação e saúde podem ser feitas no site do projeto (drogasquantocustaproibir.com.br), na Calculadora da Proibição, ferramenta que permite você aumentar e diminuir áreas de investimento até alcançar as siglas gastas pelos governos de São Paulo e Rio.

Na sala de sua casa, Julita olha para a câmera. Atrás dela há uma parede com máscaras africanas
(Julia Lego/CLAUDIA)

Qual a situação da população carcerária brasileira hoje?

Segundo os números oficiais, temos cerca de 800 mil presos no Brasil, é a terceira população carcerária do mundo. Desde que comecei na área, em 1970, a condição que já era trágica piorou. Podemos observar um crescimento da curva de presos a partir da Lei das Drogas, em 2006.

Essa legislação, que deveria prever que usuários e portadores de drogas não fossem penalizados com prisão, possui uma enorme brecha, permitindo interpretações diversas dos juízes. A lei diz que o juiz pode distinguir o usuário do traficante a partir de circunstâncias sociais e pessoais. Não há nada mais hipócrita. É uma porta escancarada para a manutenção de uma abordagem racista e classista.

Se um jovem branco, cursando a faculdade, morador de uma região típica de classe média, for pego com a mesma quantidade de droga de um jovem negro da periferia, só o segundo vai preso. Com essa lei, o traficante se torna o maior inimigo desse país, com pena aumentada.

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Agora, é importante fazer uma comparação. Acontecem cerca de 60 mil homicídios por ano no nosso país e apenas 10% dos casos são resolvidos. Estamos concentrando nossas forças no lugar correto? Não. Estamos investindo numa política, numa legislação, que contribuiu para a explosão da população carcerária, prendendo, sobretudo, jovens negros e pobres enquanto transmitimos para a sociedade a fantasia de que estamos mais seguros porque os inimigos estão ca cadeia.

Na verdade, os dados mostram que quem vai para a prisão são os varejistas da droga, ou seja, os degraus mais baixos do esquema. Eles são presos com pequena quantidade, sem arma e são primários, ou seja, não representam um perigo violento para a sociedade.

“É comum que a mulher não receba visitas na prisão. os companheiros, caso tenham, dizem ter vergonha do que elas fizeram e as abandonam. Elas ficam deprimidas”

 

 

O aumento do número de prisões é efetivo para reduzir a criminalidade?

Nenhuma pesquisa no mundo mostra isso, não há correlação de causa e efeito. Dois pesquisadores olharam para a população carcerária americana por 10 anos entre o final dos anos 1980 e meados dos anos 1990. Eles viram números de presos crescendo, mas não registraram queda na criminalidade. Ainda assim, muita gente acredita nessa falácia e em quem defende penas mais duras como solução.

A população carcerária feminina também é afetada pela guerra às drogas?

Sim, uma média de 67% das mulheres presas hoje no Brasil são acusadas de tráfico de drogas ou tráfico de drogas internacional. Em alguns estados, esse número chega a 90%. Quase a totalidade das mulheres em penitenciárias não cometeram crimes com violência. E ainda assim, as pesquisas mostram que há mais mulheres sendo presas por tráfico do que os homens. Há alguns motivos para isso.

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Primeiro, a maioria delas é usada como mula, ou seja, elas estão nas atividades mais subalternas e aceitam ganhar bem pouco por isso. Depois, porque elas raramente têm dinheiro para subornar o policial, são presas sem nada no bolso. Em terceiro lugar, elas não conseguem negociar a troca de informações para baixar a pena, como fazem alguns homens, porque elas não sabem nada do esquema.

A maior parte das mulheres brasileiras é chefe de família e entre as encarceradas isso não é diferente. Quando ela é presa, seu filho vai para um abrigo ou para a casa de algum familiar, que raramente tem condições de cuidar direito. Ainda pode acontecer dele recorrer ao tráfico para ganhar o sustento, mantendo o ciclo de empobrecimento.

A prisão desmonta as famílias. Só que isso acontece em grandes quantidades, não um caso ou outro. Quando a mulher comete um crime, ela rompe com duas ordens: a legal, pois infringiu um artigo do código penal; e a social, porque ela rompeu com as expectativas postas sobre ela de cuidar dos filhos, da casa, da família. Por isso se cria um estigma tão grande em cima dessa mulher.

É comum que ela não receba visitas na prisão. Os companheiros, caso tenham, dizem ter vergonha do que elas fizeram e as abandonam. Uma vez, uma mulher me contou que o marido havia dito para os filhos que ela tinha morrido. Imagina como fica a saúde mental dessa mulher. Elas ficam deprimidas. Agora, se você passa na frente de uma penitenciária masculina num sábado, vê que as filas de mães e esposas dobram a esquina.

Apesar desse cenário já assustador, há quem defenda reduzir a maioridade penal.

Todos os estudos indicam que os adolescentes privados da liberdade são aqueles com os quais a sociedade não cumpriu o mínimo das obrigações. Ele não teve estudo, é comum que não se forme nem no ensino fundamental. Aí não consegue oportunidades de trabalho e vai para o tráfico para poder ajudar com dinheiro em casa.

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Esse é considerado um dos piores tipos de trabalho infantil, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Nós temos uma dívida com esse jovem. A sociedade que permite todos esses absurdos ainda quer reduzir a maioridade penal, culpando o jovem por uma falha sua?

As condições dos presídios brasileiros são extremamente precárias. Ainda assim, tem quem diga que custa muito caro sustentar os presos sem trabalhar. Qual o gasto com um preso hoje?

Já ouvi algumas vezes esse argumento de que a sociedade trabalha para sustentar malandro. Na minha experiência dentro das prisões, toda vez que abríamos uma nova oficina de trabalho, havia briga por uma vaga. Muitos sustentam a família aqui fora com o que ganham na cadeia, mesmo sendo um trabalho precário, com ganho ínfimo.

Além disso, a cada período trabalhado, eles conseguem reduzir a pena, então é claro que existe interesse em fazer algo lá dentro. É um equívoco achar que o preso não faz nada. Hoje, o custo médio de manter um preso no Brasil é 3,5 mil reais. Em alguns estados, chega a 5 mil reais.

Nessas condições absurdas que a gente vê. Isso é mau gasto gasto do dinheiro público, proveniente dos nossos impostos. É com base nesse raciocínio que, há alguns anos, proponho reflexões sobre a validade do investimento nos órgãos que implementam e mantêm as políticas contra as drogas.

“A gente tende a responsabilizar o policial da ponta pelo mal causado, pelas mortes, mas ele sozinho não é culpado por essa política bélica e punitivista. Há um sistema por trás”

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Como funciona esse raciocínio do custo?

Depois de muitos anos trabalhando no sistema penitenciário, percebi que não fazia diferença o quanto eu me dedicava, estimulava certas atividades, mudava o esquema. Tem uma frase de um Ministro da Justiça inglês que diz: “A prisão é uma forma cara de tornar as pessoas piores”. Depois de alguns anos, finalmente aceitei isso e entendi que ainda vai demorar muito para ter uma reforma significativa nesse âmbito.

Aí passei a trabalhar com alternativas a penas de prisão. Nesse processo, comecei a dar palestras explicando o impacto da prisão na vida da pessoa e da sociedade. Eu falava que a prisão aniquila o indivíduo, destrói a autoestima, acaba com a família, torna quem é violento ainda mais agressivo e quem não era violento sai transformado por causa de tanta humilhação, desumanidade, crueldade.

Mesmo com toda essa exposição, as pessoas nem sequer se mexiam. Não alcançava os corações esse discurso. Na época, eu era do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Estávamos trabalhando para mudar a legislação na área de penas alternativas e isso realmente passou em 1998.

Entrei em contato com a história de uma mulher que tinha sido condenada a 2 anos e 4 meses de prisão por ter furtado dois pacotes de fraldas descartáveis de um mercado. Era o começo da era das câmeras digitais e eu tirei uma foto de dois pacotes de fraldas. Coloquei na apresentação com um símbolo de igual e 7,5 mil reais ao lado.

Quando chegava nesse slide, eu perguntava para a plateia se havia sentido as fraldas custarem aquele valor. E explicava que era o gasto para manter a mulher presa na época, que saía do bolso do contribuinte. Finalmente, as pessoas começaram a se chocar com o que eu falava. Notei que isso virava a chave, então abandonei os discursos sobre a desumanização que é a privação de liberdade e troquei pelas comparações monetárias.

Tinha uns exemplos surreais, como um homem preso por ter roubado um galo de briga, outro que tinha sido pego roubando alfaces da horta de um homem poderoso numa cidade bem pequena. Com a verba usada para mantê-los presos, poderíamos sustentar número tal de alunos na escola ou construir “x” casas. Era bem mais impressionante.

Na sala de sua casa, Julita olha para a câmera
(Julia Lego/CLAUDIA)

É a mesma linha de raciocínio que você apresenta no estudo atual…

Nos últimos 10 anos, comecei a trabalhar com essa política de drogas, porque entendi que ela sempre atravessava meu caminho nos vários trabalhos que tive. E então tive a ideia de aplicar o mesmo princípio das comparações. O nosso projeto atual parte disso.

Agora, vamos fazer um comparativo entre as crianças em escolas em regiões frequentemente invadidas pela polícia, que vivem constantes tiroteios, e as crianças em regiões de baixa renda, mas sem esse medo e ameaça da força policial e da violência. A ideia depois é mostrar como a guerra às drogas atrapalha a educação e interfere, inclusive, nos ganhos futuros de um aluno. Diminuindo seu rendimento quando adulto, também cai sua contribuição com a sociedade. É mais um exemplo do impacto dessa fracassada guerra.

Quais valores vocês estão trabalhando até o momento?

Tomamos como base o ano de 2017 por não ter sido eleitoral, portanto há menos intervenções nos orçamentos. Só o Rio de Janeiro e São Paulo gastaram 5,2 bilhões de reais no combate às drogas. Além do dinheiro público drenado, essa narrativa dá ao policial passe livre para entrar na favela e fazer o que bem quiser sob a justificativa de derrubar o inimigo. É o álibi perfeito e a sociedade fala “Amém”.

A ONG Fogo Cruzado fez um levantamento que mostra que 100 crianças morreram vítimas de bala perdida nos últimos 5 anos na região metropolitana do Rio de Janeiro. A gente tende a responsabilizar o policial da ponta pelo mal causado, pelas mortes, pela dor, pelos bens destruídos, mas ele sozinho não é culpado por essa política bélica e punitivista. Por trás, há um sistema criminal funcionando para fazer valer o racismo estrutural.

O Raull Santiago fala que a única política que chega na favela vem pela ponta do fuzil. Mas isso não parece incomodar a sociedade. O Ministério Público e o judiciário são omissos. Não se vê consequências após esses atos violentos da polícia. No Brasil, a polícia mata quase 6 mil pessoas por ano. Só no Rio de Janeiro, são mais de mil vítimas, o mesmo que os policiais matam nos Estados Unidos em um ano. A gente deveria se envergonhar.

Não foi muito falada a situação da população carcerária durante a pandemia. O que há de informação disponível?

Realmente, as informações são bastante escassas. Alguns estudiosos da área estão tentando acesso aos dados. Imaginamos que a pandemia está grassando lá dentro. Mas os jornais não falam sobre isso e a população não quer saber.

Porém, um dado importante é que, dos nossos 800 mil presos, cerca de 40% são provisórios, ou seja, saem da cadeia. A parte da população que não se importa com a doença dentro da prisão precisa levar em consideração que esses homens e mulheres estão circulando e podem trazer a doença para fora, ou seja, é essencial olhar para a situação dos presídios agora.

O que falta para termos mais mulheres eleitas na política

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