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Essas mulheres transformaram a dor da violência de gênero em luta

Elas fizeram do trauma um grito para mudar realidades cruéis. E seguem combatendo o abuso sexual, o feminicídio e o assassinato de seus filhos negros

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 6 ago 2020, 17h34 - Publicado em 8 mar 2018, 19h44
(Divulgação/CLAUDIA)

O sofrimento faz um rombo na alma, deprime, pode ser paralisante. Há pessoas, no entanto, que tiram dele uma força motriz capaz de empurrá-las, surpreendentemente, de volta à vida. São as mulheres mais tenazes, persistentes, inconformadas, que não descansam enquanto não acham saída para o problema grave que se apresenta para elas como sentença, como um final sem solução.

Então, se erguem, chacoalham governantes, legisladores, juízes e a sociedade. Ninguém as silencia. Maria da Penha Fernandes apanhou, levou um tiro do marido, ficou paraplégica, não aceitou a impunidade dele. A história correu o mundo e ela conseguiu levá-lo ao segundo julgamento. Incomodou autoridades até que o país criou a lei que coíbe a violência doméstica.

Débora Maria da Silva ainda não viu o culpado de assassinar seu filho ir a um tribunal, mas juntou no país centenas de mães que tentam impedir o genocídio dos jovens pobres, praticado pela polícia. Juliana de Faria, Valentina Schulz e Monalysa Alcântara reagem ao assédio diário que subjuga as mulheres. Pauliane Amaral quer respeito à memória da irmã. Não se cansa de pedir que o homicídio contra a mulher (e por ela ser mulher), praticado por um homem que a domina pela força, seja tratado como feminicídio.

A persistência não leva apenas alento à alma delas, mas renova as esperanças da coletividade por um mundo sem barbárie. E pode garantir direitos, justiça e paz para todas nós.

Maria da Penha, Fortaleza

(Marcus Steinmeyer/CLAUDIA)

Além de levar à criação de uma lei que é referência mundial, ela dá palestras e cursos para prevenir a violência doméstica

“Minha relação com meu marido nem sempre foi violenta. No início, éramos unidos. Quando começaram as agressões, tentei conversar, pedir que ele parasse; depois sugeri a separação. Não tinha a quem recorrer – a lei não me ajudava, não existia delegacia da mulher… Eu sentia medo de insistir no divórcio e acabar morrendo. Ele tentou me matar duas vezes.

A primeira, em 1983, quando tomei um tiro de espingarda, que me deixou paraplégica. Ele mentiu à polícia. Declarou que ladrões haviam invadido a casa e disparado a arma. Depois, empurrou a cadeira de rodas para debaixo do chuveiro e tentou me dar um choque elétrico. Saí de casa enquanto ele viajava e fui morar com meus pais. Durante a investigação pela invasão à minha casa, a polícia notou a inconsistência do depoimento dele e o prendeu. Mas logo saiu.

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Demorou oito anos para acontecer o primeiro julgamento. Sentada ali, assistindo, eu pensava: ‘O que falariam de mim se eu não estivesse viva’. Nessa hora, sempre denigrem a honra da vítima. Condenado, conseguiu a anulação do julgamento. Foram mais seis anos até o segundo, quando meu agressor recorreu da sentença e foi absolvido. Só acabou sendo preso 19 anos e seis meses após o crime, quando ONGs, em apoio a mim, mobilizaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Além de acatar a denúncia por violência doméstica, a instituição condenou o Brasil pela falta de justiça às mulheres na mesma situação. A pressão que fizemos levou à elaboração da lei que coíbe o crime, prevê mecanismos de educação do agressor e prevenção.

A notícia mais feliz da minha vida foi o anúncio de prisão, depois de tanto choro, angústia e luta – que incluiu um livro que publiquei contando minha história. Hoje, com a lei, muita coisa melhorou, principalmente nas grandes cidades. Mas as mulheres de municípios menores ainda estão desassistidas. Muitos não têm delegacia da mulher, abrigo para elas nem defensoria pública ou Juizado de Violência Doméstica.

Nosso papel é exigir das entidades públicas que a lei seja colocada em prática. E convencer as entidades privadas a se juntarem a nós, orientando as funcionárias. Os homens também são bem-vindos; muitos já se engajaram. Mas a maioria viu o pai batendo na mãe, o avô na avó. Aprenderam que isso é normal, mandam na casa, na mulher. E ensinam aos filhos. O Instituto Maria da Penha tem a educação em sua missão. Damos cursos para conscientizar mulheres em comunidades carentes e para estudantes de direito. Fazemos convênios com governos e contamos com investimentos privados e de pessoas que desejam contribuir com a causa.”

Monalysa Alcântara, Teresina

(Luís Crispino/CLAUDIA)

Eleita Miss Brasil no ano passado, usa seu espaço público para ressaltar a luta da mulher negra contra a objetificação de seu corpo

“O   aconteceu comigo muitas vezes. E com outras negras que ouviram, e ouvem, palavras ofensivas nas ruas, no ônibus. Eu devia ter 12 anos quando, conversando com primas mais velhas, comecei a entender o feminismo.

Só de olhar para meu entorno compreendi que as prioridades das meninas negras eram diferentes. Não que a nossa luta seja mais importante, mas via como sofríamos com a hipersexualização dos nossos corpos desde cedo. Era como se estivéssemos à disposição dos homens, e eles pudessem fazer comentários machistas se desejassem. Ou pior, nos tocar. Sendo modelo, insinuam que vivo como prostituta.

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Minha irmã é bem corajosa e responde toda vez. Um avanço, porque fomos criadas por uma mãe de mentalidade mais antiga, que aprendeu a seguir aceitando. O olhar racista para o corpo passa por muitas esferas. Em trabalhos, já ouvi: ‘Ela é mais resistente, aguenta tarefas pesadas porque é negra’. Não nego minha capacidade, mas ela nada tem a ver com a cor da pele. Como miss, me sinto responsável por dar voz às mulheres, expor o prejuízo provocado pelo machismo e racismo. Desejo ajudar a sociedade a mudar de rumo.”

Pauliane Amaral, Campo Grande

(Luís Crispino/CLAUDIA)

Depois da morte da irmã, Mayara, ela fez um manifesto denunciando a falta de preparo das autoridades para investigar o feminicídio

“Assim que soube do assassinato da minha irmã por um homem com quem ela mantinha uma relação, passei a tratar como feminicídio. Mayara foi carbonizada e descartada num matagal em julho de 2017. A polícia investigava latrocínio, roubo seguido de morte, alegando que o violão, o celular e o carro velho dela haviam sido levados pelos criminosos. Se fosse homem, Mayara não morreria em um motel a marteladas.

Há uma recusa em ver que o matador pode estar ao lado – ele manipula, subjuga e percebemos tarde demais. A sociedade misógina julga a vítima, diz que o crime aconteceu por ciúme, que ela usava roupa indecente e pediu aquilo. Minha irmã era musicista, mestre, sua dissertação falava sobre desigualdade de gênero na música. Usava calça jeans e tênis ao ser morta. Doeu ouvir gente comparando-a com uma devassa.

A segunda violência é a discussão sobre o tipo do crime. Enquadrar como feminicídio beneficiaria o assassino, dizem alguns operadores do direito. Explico: latrocínio prevê pena maior e o julgamento é mais rápido. Mas não faz justiça à memória dela. Rompi com meu pai por discordar nisso. Minha mãe, sensibilizada, o deixou após anos de violência doméstica.”

Débora Maria da Silva, Santos (SP)

(Marcus Steinmeyer/CLAUDIA)

Fundadora do Mães de Maio, viaja o país e o mundo expondo o genocídio de jovens pobres praticado pela polícia brasileira

“Era meu aniversário e o Dia das Mães de 2006. Meu filho Rogério, então com 29 anos, tinha tirado o dente do siso. Dormiu, só acordou para cantar parabéns e foi para a casa dele. Disse que trabalharia no dia seguinte porque não havia levado o atestado do dentista ao chefe. Pedi que se cuidasse. Vivíamos uma época difícil. A Polícia Militar estava em guerra com o Primeiro Comando da Capital (PCC); a TV mostrava tiroteios e batidas policiais em São Paulo.

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Horas depois, Rogério voltou para buscar o remédio que esquecera. Eu implorei que ficasse, ele não obedeceu. No dia seguinte, pairava um clima sinistro, uma agonia coletiva. Acordei com a sensação de que havia cheiro de carne crua com sangue no ar. Um familiar que é policial ligou e disse que a guerra tinha chegado à Baixada Santista, onde vivo, e que quem estivesse na rua seria considerado inimigo. Tentei ligar muitas vezes para Rogério, mas ele não atendeu. Fui limpar o quintal, cuidar dos cachorros para me distrair. Ouvi no rádio sobre a chacina da madrugada. Naquele maio, os confrontos entre estado e PCC mataram 564 pessoas, a maioria negra, da periferia, sem provas de conexão com crimes, ficha limpa. Os corpos se acumulavam no Instituto Médico Legal. Meu filho era o terceiro da lista de Santos. Gritei, desesperada. Ele foi assassinado pela PM, de capacete, perto de um posto de gasolina onde abasteceu a moto. Me levaram ao hospital, deixei de comer, eu morri. O que tem aqui é um cadáver ambulante em busca de justiça.

Quando estava me abandonando na tristeza, Rogério me visitou em sonho. Pediu que eu lutasse. É isso que faço. Com outras mulheres que viveram o mesmo, fundei o Mães de Maio. Há um genocídio de jovens negros, e precisamos deter isso.

Quero que o culpado pela morte de Rogério seja julgado. Além da injustiça, o que fica é um rastro de destruição. As mães que não conseguem batalhar pela verdade, entram em depressão e morrem cedo. Conheço muitas que sofrem com câncer de ovário, útero ou mama, órgãos que geram e nutrem a vida – o que foi tirado delas. Eu era pacata, não sabia falar em público, mal conjugava verbos. Virei uma leoa. Subi pela primeira vez a serra para São Paulo.

Fui atrás da Ouvidoria da Polícia, do Conselho de Defesa do Direito da Pessoa Humana, encarei juízes. A maior cidade do país ficou pequena. Parti para Brasília, fui ao Ministério da Justiça, falei no Senado, com a presidenta Dilma. Com a Anistia Internacional, viajei para os Estados Unidos, o Peru, a Inglaterra. Preencho o buraco que o estado cavou. Meu filho deixou um legado: luto pelos que ainda estão vivos, para que não se repita o que aconteceu com Rogério.”

Valentina Schulz, São Paulo

(Luís Crispino/CLAUDIA)

Ao aparecer em um programa na televisão, sofreu uma onda de assédio nas redes sociais. O assunto é tema em seu canal no YouTube

“Meu sonho era estar na TV em um programa de culinária. Aos 11 anos, já tinha contas no Twitter e no Facebook e sabia que estaria exposta. Imaginei que o mais difícil seria lidar com haters, pessoas que espalham ódio sem motivo algum.

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No dia seguinte à exibição do primeiro capítulo de MasterChef Kids, os colegas da escola me contaram dos comentários de pedófilos. Eram adultos falando do meu corpo, de mim. Fiquei chocada; como alguém faz aquilo com uma criança. Não fui ler porque me deixaria triste demais. Só uns três meses depois, vi os tais posts.

Na hora, me deu tanto medo que liguei para minha mãe e disse que deletaria as minhas redes sociais. Mas pensei melhor e resolvi que não deixaria aquelas pessoas, que nem mostram o rosto de verdade, me derrubar. Ainda mais porque não é nada perto do carinho que recebo nos meus perfis.

Fiquei traumatizada por um tempo, demorei para postar fotos com decote, biquíni. Aí entendi que eles precisam se educar; e não eu me restringir. Decidi criar um canal no YouTube para falar de igual para igual com gente da minha idade sobre temas, tipo bullying, primeiro beijo, namoro e também alertar para o assédio.”

Juliana de Faria, São Paulo

(Luís Crispino/CLAUDIA)

Casos de assédio a levaram a criar a campanha Chega de Fiu Fiu, que acredita na educação de homens e mulheres para acabar com esse tipo de agressão

“Por muito tempo eu me calei. Aos 11, ouvi um motorista gritar grosserias de dentro de um carro. Coisas parecidas ocorreram repetidas vezes. Eu engolia, porque parecia legitimado.Doía, irritava, mas eu não me reconhecia como vítima.

Quase 15 anos depois, entendi que a dor pessoal era, na verdade, coletiva. Amigas contavam casos, outros vinham a público. Criei a campanha Chega de Fiu Fiu para debater o tema. Ouvindo, lendo, participando, aprendi que não importa se uso roupa curta ou não, se moro numa cidade violenta ou se saio na rua à noite. A agressão acontece com todas. E porque somos mulheres.

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Parei de me culpabilizar, de imaginar o que tinha feito de errado para merecer aquilo. É por meio da educação que vamos mudar a situação. Não adianta ter uma lei rígida se os que deveriam aplicá-la não estão conscientes da origem da violência contra a mulher. Se vou denunciar um assédio e o delegado não me entende, depois o promotor coloca em dúvida minha credibilidade e o juiz tem um olhar enviesado, fica estabelecido que o homem pode assediar. Evoluímos muito nos últimos anos e, se sobem as estatísticas, é porque estamos mais corajosas para denunciar.”

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