Fitó: Composto só por mulheres, é referência em culinária nordestina
Aprenda algumas receitas dos pratos tradicionais (e geniais) do cardápio e a história da equipe que traz uma aura familiar ao ambiente
Ao entrar no restaurante Fitó, aberto em junho passado no bairro de Pinheiros, em São Paulo, veem-se apenas mulheres. E transexuais. Da cozinha à administração, passando pelo bar e pelo salão, que acomoda 50 pessoas. Eram 10 horas da manhã quando Morena Caymmi, 27 anos, hostess da casa, parou na frente do espelho e amarrou um lenço estampado na cabeça.
Tirou da bolsa um quimono vibrante e pôs sobre seu vestido preto. “Assim fico mais alegre para vocês”, disse referindo-se à nossa equipe. Morena nasceu em Teresina. Concluiu a graduação em jornalismo, em São Paulo, com um trabalho sobre a vida de travestis e transexuais que haviam superado a expectativa de vida – que, nesse grupo da população, no Brasil, é de apenas 35 anos.
Descobriu-se mulher ainda pequena. Com a maturidade, tomou coragem de se assumir. “Foi uma libertação poder me maquiar, calçar sandálias e sentir a feminilidade.” Morena nunca conseguiu estagiar na área de comunicação e, nas entrevistas que fazia, se via discriminada. “Às vezes, me chamam de senhor de propósito. É duro ser debochada nas ruas”, afirma. Mas ela responde a quem for sempre com muita simpatia – a mesma com que recebe a clientela do Fitó. “Meu trabalho é fazer as pessoas se sentirem em casa.”
Morena soube pelo Instagram que o restaurante – já famoso por seu baião de dois vegetariano – estava contratando mulheres com seu perfil. Não hesitou em enviar uma mensagem para Cafira Foz, 33 anos, dona do espaço, que pediu a ela para começar no dia seguinte. “Cheguei com um sorriso no rosto”, lembra. Depois de “ficar impecável”, como ela descreve o próprio visual, checa se tem evento no dia e organiza a lista de espera. Abre as portas às 12 horas para o almoço. “Sou a primeira imagem que as pessoas têm daqui. Preciso estar alinhadíssima”, afirma, confiante. A patroa sorri para ela.
Cafira rejeita o título de chef. Prefere ser chamada de “uma cozinheira que tem uma casa de comida nordestina”. Sua trajetória, no entanto, começou longe do fogão. Ela chegou à capital paulista para trabalhar na indústria de moda, mas se desiludiu com o mercado e se deprimiu. “Estava perdida, sem saber o que nortearia minha vida”, conta a cearense, que cresceu no Piauí.
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Foi preciso ir à França, cinco anos atrás, visitar a mãe, que ainda vive lá, para enxergar um caminho. “Comi num restaurante vietnamita e me emocionei. Ele tinha sabores da minha infância, como coentro, pimentas, caldos e especiarias.” No dia seguinte, comprou livros de culinária e abarrotou as malas.
Ali descobriu que queria abrir um restaurante. “Só a gastronomia traz essa sensação de aconchego mesmo estando longe”, justifica. Intuitiva, estudou e aprendeu a cozinhar sozinha, em casa. Pensava todos os dias como faria disso um trabalho, pois não conhecia ninguém na área. Primeiro, serviu amigos e familiares. Quatro anos depois, o restaurante virou realidade e já foi eleito pelo “New York Times” como um dos melhores programas para fazer em São Paulo.
Fitó é o seu apelido carinhoso de infância e carrega muito da personalidade dela. A moça de nome forte, traços marcantes e cabelo curtinho idealizou um espaço de acolhimento. Ao empregar apenas mulheres e trans, ela constrói um negócio que considera mais justo. “Por muitos motivos, nós não somos contratadas”, pontua Cafira.
No Fitó, que serve uma casquinha de siri inesquecível, a prioridade será sempre a mulher. Dou vez e voz para as minorias”, justifica. Isso tem a ver com experiências traumatizantes que passou em algumas cozinhas profissionais. “Eram ambientes machistas, opressores, que não admitiam mulheres em cargos altos. Vi várias ganhando menos que os homens apesar de exercerem a mesma função”, relata. É bem comum.
Muitas de suas parceiras no Fitó passaram por episódios parecidos. A paulistana Sonia Lika, 35 anos, gerente-geral da casa, conta que, além de provar competência, teve de carregar muita caixa pesada “para mostrar que não precisava deles”. Bastou tornar-se líder da equipe, formada só por homens, para ser alvo de piadas. “Tive que mandar muitos embora para os outros funcionários entenderem quem estava no comando”, conta.
A manauense Maria Carla de Paula e Souza Dias, 33 anos, braço direito de Cafira, lembra que mulheres desistem da profissão por alguma situação desagradável a que são submetidas. “Há restaurantes que as sobrecarregam com muitas tarefas só para ver quanto suportam. Isso é humilhação”, afirma. “Nosso ingrediente-chave? Respeito.” Trabalhar só com elas é também questão de afinidade. “Eu desconheço essa história de que não conseguimos conviver bem porque somos competitivas”, explica Cafira. “Pelo contrário, nós nos ajudamos.
Existe sororidade e empatia quando uma está com cólica, a outra precisa buscar o filho ou tem que estudar para a faculdade. Somos mais fortes juntas.” Embora a cozinha tenha sido sempre um reduto de mulheres – principalmente porque elas faziam os pratos caladas e serviam em silêncio –, de algum tempo para cá, o ato de cozinhar foi enobrecido e valorizado. Passou a ser dos homens. Surgiram os chefs estrelados e eles ganharam os louros. Cafira se atribuiu a missão de dar poder e exclusividade à mulher. Os temperos frequentes ali são o coentro e a inclusão. “Dentro desta casa, há um feminismo libertário. Uma pequena revolução, eu diria.” Essa imagem é transmitida nas redes sociais do restaurante, onde também se discutem violência contra a mulher, aborto, assédio…
A todo vapor
Da cozinha envidraçada do Fitó, que prepara 800 pratos por dia, é possível acompanhar a equipe envolvida em ação. Durante o horário de pico, quando impera a cajuína, o refresco de caju, elas mal conseguem se falar. Lá do fundo, uma negra alta com turbante corta um abacaxi com uma concentração de admirar.
Bia Mattos, 41 anos, entrou há dois meses no restaurante por meio do Projeto Reinserção Social Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo. O programa, que dá oportunidades à população LGBTT, permitiu que Bia fizesse cursos de culinária. “Cafira me orientou a trabalhar sempre bonita”, conta ela, que, ao final do expediente, trocou o uniforme por um macacão esvoaçante, tomara que caia, com um cinto brilhante marcando a cintura. Mas nem sempre foi assim.
Nascida em Campinas (SP), Bia viveu episódios semelhantes aos de outras trans. Os pais rejeitaram sua identidade de gênero, e ela saiu de casa aos 16 anos. Em certo momento, a prostituição foi a única opção para se manter. “Por um ano e meio. Depois virei diarista, até que a patroa me pediu para cobrir a cozinheira que havia faltado. Descobri ali uma habilidade e procurei me profissionalizar”, recorda ela.
O pernambucano Mariano Albuquerque, transexual de 21 anos, chegou ao Fitó para um bico e acabou ficando. É um bom auxiliar de cozinha. “Eu queria ser militar do Exército ou trabalhar com música, duas coisas distintas”, conta. Muito além de cozinhar, ele aprendeu a lidar com pessoas. “Antes eu tinha medo ao sair de casa, era meio bicho do mato”, diz ele, que nasceu menina.
Às vezes, a equipe se reúne fora do trabalho para descontrair. “Tenho pouco tempo de casa, mas me sinto parte desse lugar”, afirma Bia. “Para nós, é uma vitória trabalhar e com carteira assinada”, diz enquanto posa para o fotógrafo. Já mais desinibida, nem parecia a mesma pessoa que cortava o abacaxi, séria, no início da manhã.
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Comida nordestina não é pesada, não
Para Morena acomodar as pessoas, é preciso que o espaço esteja em ordem, com os arranjos de flores que a garçonete Priscila Cobucci, 33 anos, da capital paulista, faz. “É um dos caprichos que um restaurante tocado por mulheres não deixa faltar nas mesas.” Outro é oferecer água sem custo aos clientes. “Um gesto simples que faz a diferença”, afirma a paulistana Paloma de Almeida, 27 anos, cumin da casa – ou ajudante de garçonete – que adora o Sossega Lampião, o refresco que junta maracujá e camomila.
O Fitó também se revela familiar pelo projeto – assinado por duas arquitetas, é claro. Na fachada, janelas azuis, ao estilo das casas nordestinas; no interior, cimento queimado, que remete ao chão das construções simples do Piauí. A escada que dá para o rooftop, reservado para eventos, exibe uma luminária cheia de história – foi feita com afeto e fibra de buriti (palmeira típica) pelo pai da cozinheira.
No cardápio, receitas de inspiração nordestina (piauiense, especialmente). E saudável. “As pessoas acham que no Nordeste só tem comida gordurosa. Minha mãe e minha avó não cozinhavam nada pesado. Lembro delas quando estou trabalhando”, diz a dona do Fitó. Suas andanças pelo mundo deram ao cardápio um toque autoral. “Busco preservar as raízes sertanejas sem abrir mão da minha essência cosmopolita”, explica.
Um exemplo é o carneiro com cuscuz de milho, tradicional no Nordeste, que encontra seu equivalente no Marrocos, onde é feito no próprio molho com cuscuz de sêmola. Há clássicos, no entanto, que são reproduzidos fielmente, embora servidos de forma mais atual. É o caso do arroz Maria Isabel que, assim como outros pratos, homenageia as mulheres. “Antigamente, só os homens, que saíam para caçar, comiam carne; elas não. Dizem que uma mãe tirou um pedaço da peça que o marido levaria, partiu em cubinhos e serviu com arroz para as duas filhas, Maria e Isabel”, conta.
O segredo para que seu restaurante se mantenha lotado está ligado a certa magia feminina. “Acredito que a gente se conecta, de um jeito muito especial, com os alimentos e, assim, deixa a comida mais potente. Aí a coisa rola”, diz Cafira, casada com Thomas Foz – o único homem que participa da operação do restaurante. Ele aprende, diariamente, que lugar de mulher é, sim, na cozinha. Naquela que dá prazer, liberta e empodera. A cozinha de Cafira e do time que ela montou.
Para fazer em casa
1. Casquinha de siri
3. Baião de dois vegetariano
4. Bolo de chocolate meio amargo com cupuaçu
5. Maria da Inglaterra
6. Sossega lampião
7. Cajuína sour
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