Mulheres à frente da OAB priorizam projetos de igualdade de gênero
Em um cenário inédito nos 90 anos da entidade, seccionais de São Paulo, Bahia, Santa Catarina, Mato Grosso e Paraná têm presidências femininas
“Não se pode sustentar que o casamento e a maternidade constituam a única aspiração da mulher ou que só os cuidados domésticos devem absorver-lhe toda atividade”. Foi com essas palavras que o Instituto dos Advogados do Brasil (IOAB) acatou, em 1899, a entrada de Myrthes Gomes de Campos (Macaé, 1895 – Rio de Janeiro, 1965) na instituição. Mais de um século depois, continuam a abrir-se os caminhos iniciados pela primeira advogada do país: em uma coincidência histórica, as seccionais da OAB em São Paulo, Bahia, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina serão presididas por mulheres.
“A OAB deve ser farol da sociedade, dar exemplo”, diz a professora e advogada Patricia Vanzolini, que comandará a OAB-SP (e será a primeira mulher a fazê-lo) até 2024. Durante as nove décadas de existência da Ordem, apenas dez mulheres ocuparam as cúpulas da instituição. No triênio de 2018 a 2021, nenhuma delas fez parte das equipes eleitas, o que levou a uma intensa mobilização da advocacia feminina e negra para a aprovação das regras de paridade de gênero e cotas raciais de 30%. “Que estados como São Paulo tenham eleito a primeira mulher à frente da OAB é muito significativo, mas ainda é pouco. Não devemos atuar apenas para que os direitos dos homens brancos, heterossexuais e cisgêneros sejam garantidos, porque isso não é democracia”, completa Patricia.
No Paraná, Marilena Winter não é apenas a primeira a ocupar o cargo, mas também a primeira a ousar candidatar-se a ele, enfrentando o conservadorismo de colegas de todos os gêneros. Ela já havia sido vice-presidente no Estado, mas confessa que tem sido difícil desmistificar o papel de uma mulher em um posto de liderança. “Acredito que as pessoas precisam se acostumar com minha figura à frente da instituição para naturalizar isso. A presença de mulheres em lugares tão arraigadamente masculinos traz a esperança de mudanças e aberturas de novas possibilidades”, afirma.
Entre os jovens profissionais da advocacia –aqueles que têm até cinco anos de inscrição na Ordem–, 64% são mulheres, de acordo com dados da própria OAB. Elas também são maioria nos escritórios de advocacia, mas apenas 30% chegam a ser sócias. “Além disso, é grande o número de mulheres que abandonam a advocacia durante a gestação e após a maternidade”, comenta Gisela Cardoso, eleita como presidente da OAB-MT, a segunda a ocupar o cargo (Maria Helena Póvoas, atual presidente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, o fez entre 1993 e 1997).
De fato, na encruzilhada entre carreira e relação familiar que tão comumente se apresenta para as mulheres, os números do setor refletem a realidade do mercado de trabalho brasileiro em geral: 30% delas abandonam a profissão durante a gestação ou após a maternidade (entre os homens, isso ocorre com 7%), de acordo com estudo da Catho. Segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), quase metade das mulheres que tiram licença-maternidade está fora do mercado de trabalho após 24 meses, um padrão que se perpetua inclusive 47 meses após a licença.
Fomentar a participação delas em espaços de poder é uma das prioridades das cinco novas presidentes. “Em Santa Catarina, somos aproximadamente 50% dos quadros de advocacia, então seria natural que advogadas tivessem mais oportunidades de destaque. Isso seria obter equidade de gênero na prática”, diz Claudia Prudêncio, eleita na OAB-SC. Para Daniela Borges, à frente da OAB-BA, as novas lideranças femininas têm a oportunidade de envolver ainda mais a instituição, que já contribui com a rede de proteção de vítimas, muitas vezes ocupando cadeiras em órgãos que atendem essas cidadãs, no combate à violência doméstica e de gênero. Uma de suas propostas (que ela sonha que um dia seja lei) é que qualquer bacharel do Direito que pratique violência contra uma mulher tenha sua carteira da Ordem cassada ou sua inscrição negada.
“Outra coisa importante é o combate à violência institucional: evitar que mulheres sejam revitimizadas ao fazer uma denúncia. Todas acompanhamos o caso Mariana Ferrer e ninguém pode ser tratada daquele jeito em um processo, independente da sentença judicial”, diz ela, referindo-se à modelo que acusou o empresário André de Camargo Aranha de tê-la drogado e estuprado em 2018. Ele foi absolvido, mas o processo gerou indignação social e na comunidade jurídica, porque a defesa do réu usou fotos sensuais da jovem para questionar a acusação e o promotor responsável pelo caso alegou que o empresário não tinha como saber que Mariana não estava em condições de consentir ao ato sexual, não existindo, então, a intenção de estuprar. “Para além de defender e aprimorar o exercício da advocacia, nossa obrigação também é denunciar esses absurdos jurídicos e evitar que se repitam”, diz Daniela.
Machismo e democracia
As cinco mulheres à frente da OAB assumem a presidência da entidade em um ano especialmente desafiador, com eleições tão ou mais polarizadas que as de 2018. Questionada sobre como a Ordem, uma instituição apartidária, pode ser mediadora entre os poderes públicos e a sociedade nessas circunstâncias, Patricia Vanzolini faz, primeiro, uma denúncia: “O machismo estrutural é muito difícil de ser visto. Prova disso é o retrocesso que vemos no cenário político, em que faltam candidatas e, até o momento, não existem pautas sobre mulheres no debate eleitoral”.
Tanto ela quanto as demais entrevistadas concordam que o papel fundamental da OAB é a defesa do Estado Democrático de Direito no País. “Democracia e direitos humanos não são temas de direita ou esquerda, são pautas civilizatórias. O Direito invadiu nosso cotidiano e é trabalho da instituição explicar o que pode e o que não pode, quais são os limites da liberdade de expressão, por exemplo, e até os modelos jurídicos do Supremo Tribunal Federal (STF), principalmente quando virou moda falar das ‘quatro linhas da Constituição’”, diz Patricia.
Ela e suas colegas ressaltam que, a partir do momento em que homens e mulheres decidem juntos, tudo é mais democrático. “Mas é importante ter mulheres decidindo por elas”, pondera Gisela Cardoso, que considera que a OAB dá um “recado de igualdade para a sociedade” e incentiva outras como elas, que muitas vezes se sentem tímidas ou desencorajadas a sequer se candidatar a cargos de liderança, a dar esse passo. Uma revolução que, esperamos, não pare por aqui.