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“Perto dos 30, entendo a potência do que é ser mulher”, diz Mari Goldfarb

Em um depoimento para CLAUDIA, a apresentadora divide momentos da sua trajetória, como o diagnóstico de anorexia e os processos de cura de seus traumas

Por Mariana Goldfarb
15 fev 2021, 10h00
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 (Leco Moura/Reprodução)
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Ninguém te conta, quando você nasce, sobre os desafios que vai encontrar pelo caminho pelo simples fato de – por conta do destino, da combinação de gametas, por Deus ou porque estava escrito – você ter nascido mulher. E preste atenção: não era para ser um desafio.

Ninguém nos conta que a todo momento temos que provar o nosso valor. Nem sei se é essa a palavra certa para usar aqui, mas a todo momento temos que provar que “prestamos”. Inclusive, além do que se espera para termos mais validade.

Ninguém me contou que a minha “casca” resumiria tudo que eu sou. Ninguém me contou que por estar dentro de um estereótipo muitas pessoas iriam me subjugar, que eu teria que mostrar que sei usar as palavras, que tenho verdadeira adoração por elas, exatamente como estou fazendo agora.

Ninguém me contou que o meu corpo é um objeto que pertence a todos, menos a mim. Ninguém me contou que o meu corpo não iria me pertencer, que eu teria que lutar por ele. Ninguém me contou que eu teria ser a mais bonita da sala, a mais simpática, a mais espirituosa, a mais divertida, a que não responde ou não tem opinião contrária e viveria de dieta.

Ainda teria que conseguir tudo isso competindo com as minhas rivais, que são rivais simplesmente por serem feitas do mesmo material que eu. Simplesmente por serem mulheres. E foi com elas que travei guerra sem nem saber. A gente nasce competindo e a gente nem sabe disso. É o “natural” das coisas. Nos incitam a criar divergência com nós mesmas para conseguir você sabe o que, você sabe quem.

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Cresci assistindo Cinderela, em que todas as moças do reino querem um só príncipe e se preparam para uma só noite, que irá salvá-las de um destino miserável. Para isso, são capazes de fazer maldades e faltar com caráter uma com as outras, até a mãe participa da engenhosidade de crueldade, inclusive é ela uma das responsáveis pelo atrito entre as filhas.

O príncipe personifica um objetivo final, que poderia ser um cargo de trabalho, uma posição social ou também, é claro, um homem. É sempre sobre o outro, sermos alguém para o outro. E foi assim que comecei a minha trajetória de feridas e cicatrizes. Quis ser mais para o outro e menos para mim.

Comecei trabalhando como modelo quando tinha 16 anos e, não se iludam, não foi porque amava. Antes disso, já ajudava a minha família com o nosso negócio, que é uma papelaria e livraria no Humaitá. Lá, passava as férias escolares ajudando, porque desde garota meus pais me passaram a importância de conquistar as nossas próprias coisas.

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(Leco Moura/Reprodução)

Desde pequena eu sabia que queria ter por mim e não pelos outros. Não venho de família rica, venho de uma realidade bem semelhante à boa parte das famílias que aqui neste país se encontram. Meus pais são classe média e já passaram pelo desemprego, não por falta de capacidade ou competência, mas porque aqui no Brasil à medida que as pessoas vão envelhecendo elas vão perdendo seu valor.

Meu avô tinha loja no mercadão de Madureira antes dele pegar fogo e perder tudo. E é claro que o governo não fez nada. Passei por apertos com a minha família ainda criança, quando vi e aprendi a não depender de ninguém.

Minha mãe teve a ideia de me levar em algumas agências de modelo quando ainda era garotinha, mas eu não pegava nenhum trabalho, era só uma chatice e sugação danada! Milhares de crianças com as suas mães nas filas enormes para fazer teste para comerciais. Lembro que ficava tímida, mas desde essa época eu escutava que daria certo.

Aos 16 anos, entrei para uma agência de modelo e comecei a trabalhar. Lembro que as minhas primeiras campanhas foram de pijama e maquiagem. Meus pais guardaram tudo que já fiz até hoje. Sempre fui sapeca, teimosa, rebelde, criança. Então à medida que os trabalhos foram crescendo, e eles cresceram muito rápido, também cresceram as exigências com o meu corpo.

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Tenho costas largas por causa da combinação de gametas, destino, Deus… porque era para ser assim ou simplesmente porque fiz anos de natação e era boa nisso. Mas isso era um problema. Meu corpo não era simétrico e perfeito. Costas largas e pouco quadril. Corpo triângulo, como dizem.

Tinha o apelido de nadadora (nada de frente, nada de costas) ou de tênia (que foi dado pelo meu professor de biologia). Para quem não sabe, tênia é um parasita que tem um formato onde não dá para saber se ela está de frente ou de lado. Lembro que nessa época eu usava dois sutiãs com enchimento para ir à escola e ficar mais atraente para os meninos, mas no fundo, comigo mesma, eu só queria brincar. Demorei para menstruar, demorei para beijar na boca, mas depois foi um pulo até perder a virgindade.

Ninguém me contou que eu teria que gastar horas no salão, estar com a unha sempre feita, sobrancelha desenhada, ter “modos” (que orgulhosamente eu não tenho até hoje), sentar igual mocinha, não falar palavrão, servir às pessoas e me dar por mais fraca do que qualquer rapaz. “A diferença é que ele é menino, ele pode”. E aproveitando o gancho, deixo claro que não faço nem ideia de como é ser homem em uma sociedade tão tóxica para eles também.

Desenvolvi anorexia por uma combinação de fatores que são muito complexos e profundos para tentar explicar em um só texto, mas, basicamente, desenvolvi anorexia por uma falta de amor-próprio tremenda, que não permitia que meu corpo se alimentasse. Virei a minha pior inimiga, era a minha própria carrasca, e ainda sou em alguns momentos a minha própria capataz. Me juro de morte em alguns momentos.

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A pressão para ser aceita era e é tão grande que perdi os meus próprios limites, se é que um dia os tive. Ninguém me contou que o processo de volta para casa era tão árido. Passei mal algumas vezes por falta de comida, caí na academia depois da aula de spinning por estar tão fraca, tão sem vida, por nem saber quem a Mariana era.

Tudo que me fazia mulher tinha sumido das minhas mãos. Vestia um corpo sem alma. Precisava urgente voltar para casa e reunir os meus pedaços que tinham me abandonado por descuido e maus tratos.

Chamei os pedaços por muito tempo, os procurei onde mais gostava de estar. Procurei atrás dos passarinhos, cantei o mais alto que pude e ofereci recompensa para quem os achasse vivos ou mortos, não me importava, só os queria de volta.

Foi nesse percurso de volta para casa, árido, sofrido e pálido, que estou me encontrando mais forte, mais inteira, mais mulher. Hoje, aos quase 30 anos, estou começando a entender o que é ser mulher e qual é o tamanho infinito dessa potência.

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Perdi muitas coisas pelo caminho. Perdi minha ingenuidade, minha inocência, minha pureza. Paguei caro, tão caro que dinheiro nenhum compra. Sempre fui criança, broto, botão, nunca avião e sempre quis ser passarinho.

Hoje entendo que a minha busca não é só minha. Tenho dever de ser mulher não só para mim. Tenho obrigação de juntar forças, de me fazer presente e de lutar por causas que acredito. Ser mulher pode ser tudo, menos ficar na inércia.

Se queremos mudar alguma coisa, temos que ser agentes dessa transformação. Dói muito, mas permanecer adormecida não é mais uma opção. Quero fazer uma corrente com esse texto. Quero pedir perdão a todas as mulheres, inclusive a mim, por tantas atitudes que poderiam ter sido tomadas de maneira diferente.

Quero também avisar que estou acordada. Que estou em pedaços, mas ainda inteira. E que é possível – sempre é possível – voltar para casa. Esse caminho pode ser feito de várias maneiras, por meio de arte, dança, escrita, pintura, criações das mais diversas.

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Estou encontrando esse caminho através da cura, não só minha, mas de todos que buscam se curar. É fazendo nutrição, estudando, criando uma linha de barrinha saudável que me orgulho muito, a Clean Foods, para quem quer mudar de estilo de vida, propondo um despertar coletivo. Eu acredito que assim eu consigo fazer alguma diferença e reunir todos os meus pedaços e ainda encontrar outros.

O processo é individual, mas a cura é coletiva.

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