Não sou herdeira. E agora?
O que nós, mortais, e quem já nasceu com garantias financeiras para não precisar se preocupar temos em comum?
“Você se tornou inadequada para a empresa”, disse o chefe da minha qualificada, criativa, resiliente e experiente amiga. Ela sofreu. Doeu em mim também. Passou uma, talvez duas semanas, o impacto foi embora. Ficou um alívio, me disse. Marcamos um café, queria ouvi-la, agora presencialmente. Ela chegou: novo corte de cabelo, gata e, de fato, leve. Daí soltei uma ideia, talvez uma projeção do que eu desejaria fazer se eu estivesse em seu lugar: “Por que você não tira um sabático?”. Ela, contudo, franziu a testa de imediato. Foi então que, no segundo seguinte, eu emendei a frase, piorando aquilo que imaginei que a poderia deixar ainda mais empolgada.
“Um tempo para cuidar de você até fevereiro, quem sabe até o Carnaval pelo menos, sabe?” O café gelado que bebemos trouxe uma dose de lucidez instantânea. Eu pensei. Ela verbalizou: “Não sou herdeira. E agora?”. Rimos. Sim, nem ela nem eu havíamos nos aplicado ao cargo de herdeira. Era preciso trabalhar, sem ousar parar, porque essa não era uma escolha, mas sim a única alternativa, uma necessidade. Afinal, os boletos chegam, assim como os filhos crescem, e ninguém poderia inverter essas lógicas. Certas preocupações não passam pela cabeça de uma herdeira — ou um herdeiro, claro.
Muitas vezes não há nem cognição para tangibilizar a problemática. É uma “reflexão estranha”, como poderia repetir Virginia Woolf. Uma reflexão que deixa a herdeira incomodada e, quem não é herdeira, parecendo uma invejosa. Ambas sentem um vazio que não podem preencher, uma conversa que se tem em voz baixa.
Não há problema em nascer com a garantia de regalias para todo o sempre, amém. Quem mora na casa dos pais ou na casa bancada pelos pais, por exemplo, provavelmente discordará de mim nesse ponto: essa retaguarda inabalável pode, digamos, comprometer o pensamento crítico quando o assunto é dinheiro. Portanto, independentemente de você ser herdeira ou não, a autonomia financeira consciente dá, sim, poder à mulher.
Você ganha o suficiente para bancar o que precisa ou quer? Esse é o fantasma que qualquer mulher precisa matar, a pedra que precisa carregar. Existem exceções, eu sei. Não estou falando do 1% mais rico do mundo, que, segundo relatório da Oxfam, apresentado neste ano no Fórum Econômico Mundial, detém dois terços de toda a riqueza gerada no mundo de 2020 para cá.
Nem dos 2.640 bilionários existentes no mundo, dos quais 51 são brasileiros, sendo 6 mulheres, de acordo com a Forbes. Há os 99%, apontados pela filósofa feminista Nancy Fraser, que nos lembram que não podemos separar gênero de raça, classe, sexualidade, ecologia, democracia e políticas econômicas.
Entre os muitos atravessamentos, estou eu, a minha amiga e você. Vale atentar para as diferenças que coexistem na sociedade. Afinal de contas, o mundo experimentará, em duas décadas, a maior transferência de riqueza da história, segundo levantamento do banco suíço UBS. O estudo mostra que, apenas nos Estados Unidos, um total de US$ 84 trilhões deve passar para as gerações mais jovens.
Esse estudo também apontou que quatro em cada dez herdeiros não têm um planejamento sucessório ou testamento atualizado e mais da metade dos ricos não compartilha informações básicas sobre a fortuna com os seus herdeiros.
Somos seres ambivalentes, tudo bem. Desejamos o conforto das herdeiras, mas também sentimos orgulho de não carregar esse título. Temos, entretanto, um aspecto que pode unir a todas: a necessidade de desenhar um planejamento financeiro e manter o controle. Quem deseja autonomia para tomar um café com a amiga e sonhar junto com ela? Eu levanto a mão.
Você ganha o suficiente para bancar o que precisa ou quer? Esse é o fantasma que qualquer mulher precisa matar, a pedra que precisa carregar