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Carta do Abraço, que foi viver no futuro pós-pandemia

O que pode entrar no lugar do abraço que foi morar no futuro pós-pandemia?

Por Alexandre Coimbra Amaral* 
15 jul 2020, 11h30
 (Tim Robberts/Getty Images)
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Você se recorda do último abraço que deu naquele alguém tão querido e agora tão distante? Ou lembra do pavor que sentiu – e talvez ainda sinta – diante da possibilidade de pôr a saúde e a vida em risco por causa do, antes tão simples, gesto de abraçar? A pandemia do coronavírus transformou nossos dias, nossos hábitos e também nossos afetos. Tornou inevitável sentir saudades de um bom e velho abraço apertado, caloroso, reconfortante.

E, acredite, ele também sente nossa falta, como conta na carta a seguir. O texto abaixo, antecipado exclusivamente para CLAUDIA, faz parte de Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise, livro do psicólogo e terapeuta Alexandre Coimbra Amaral. Com sensibilidade, ele apresenta uma coletânea de cartas cujos remetentes são os sentimentos humanos, que chegam para uma conversa honesta e terna sobre como eles cumprem uma jornada viva dentro de cada um de nós. Aqui, a “carta do abraço” fala de ausência, transformação e, acima de tudo, de esperança. Confira:

“Olá.

Eu nem estava programada para existir como carta aqui neste livro, porque ele estaria pronto antes de tudo se revestir de álcool em gel. Eu também fui tomado de uma surpresa acachapante, como você que me lê. Eu vivia entre vocês, imaginando que fosse eterna a minha função de unir corpos pelo afeto ou pelo mais cerimonial encontro. Eu, o abraço, sempre fui na cultura latina uma parte indissociável do ato de existir socialmente. Você me tinha como recurso de encontrar gente e dizer várias coisas. Eu poderia significar “que bom te reencontrar”, “muito prazer”, “eu te amo”, “que saudade”. . . como uma moldura para os instantes.

Mas isso era antes.

Eu queria lhe contar como eu estou, agora. Eu vim me refugiar no futuro, que me recebeu sem palavras, com um olhar incerto. O futuro me olhava e me confirmava que agora a vida deveria transcorrer sem minha presença. Minha cota de sacrifício para a humanidade, durante a pandemia, seria o exílio. E não haveria data previsível para meu retorno como parte do sol dos dias. O futuro me acolheu como única casa, e é aqui que estou fazendo meu isolamento social. Não há como eu afirmar quando poderei retornar ao presente e ser ponte entre as pessoas. E, por isso, daqui do futuro, eu vim conversar um pouco com você.

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Eu vi você se assustar, eu vi você minimizar o que está acontecendo, eu vi você até negar a importância de todas as novas ações de preservação da vida. Este vírus chegou imperativo, dando uma série de ordens, transformando os habitantes de todos os cantos em aprendizes de uma nova ordem mundial. Eu vi vocês tendo que se fechar em casa. Na primeira semana, todos recebendo mensagens de como se divertir durante a quarentena, como se fossem férias humanitárias, em que vocês ficariam resguardados por um tempo, em benefício da evitação do colapso dos sistemas de saúde. Mas isso foi antes de você entender o tamanho da transformação que se sucederia. Isso foi antes de você perceber que o isolamento seria pressionado pelas emoções transbordadas (sobretudo o medo, a tristeza, a raiva, a culpa e a saudade), pela crise financeira, pela redução de salário ou pelo desemprego, pelo tédio e tristeza das crianças, que tanto perderam com o fechamento das escolas. Os idosos, colocados como grupos de risco, sentindo o vírus como uma espécie de veredito mortal escondido em qualquer sacola de supermercado que lhes chegasse às mãos. Os profissionais de saúde, exaustos em muito pouco tempo, lutando contra um inimigo tão visível através dos hospitais superlotados e dos cemitérios colapsados. E, enquanto isso, tanta gente que continua vivendo como se isso não acontecesse, sendo que até o futuro teve que mudar seus planos de como acontecer na vida de cada um.

(Tudo isso era e é verdade. Esta carta eu escrevo durante toda esta convulsão planetária, mas pode ser que o livro chegue às suas mãos depois dela. Aí, quem sabe, você possa fazer o contrário, contar-me o que você viveu, como transpôs tantos assombros e fez deles a sua força, a sua envergadura, a resiliência que nem você imaginava ser capaz de produzir a partir do sofrimento e da angústia).

Quando eu te vejo dessa forma, seja você qualquer dos pontos da extensa rede de afetados pelos tempos da Covid-19, eu sinto muita vontade de lhe abraçar. Sim. Este seria o momento em que você merecia um abraço do abraço. Porque eu confesso que também sinto saudades de nós dois, da forma como você fazia de mim o elo com os outros. Eu sinto saudades de ser o contrário do que o Corona fez de mim. Eu deixei de ser afeto e passei a ser risco. O que antes eu representava de esperança no humano, agora pode ser sentido como irresponsabilidade. Eu era um respiro para o humano, hoje eu posso ser a fonte da transmissão da perda do ar nos pulmões.

Eu passei um tempo assim, em silêncio, aqui no futuro, sentindo esta dor de ter que me exilar. Não conseguia sentir a esperança equilibrista, porque não sabia se poderia continuar a acontecer entre vocês. E foi no silêncio de mim que pude atravessar a desesperança e me reencontrar. Eu não estou morto. Eu não sou uma das vítimas da Covid-19. Eu sou um desaparecimento temporário, mas não um luto definitivo em sua vida. Eu sou uma metáfora do que você está sendo chamada a fazer.

Enquanto você lê esta carta, imagine-se no primeiro dia em que tudo isto aconteceu. Lembre-se da primeira vez em que você precisou estar perto de quem você sempre abraçou, sentindo o estranhamento da distância que começaria a acontecer como um padrão nos encontros. Hoje você já sente as coisas de outra forma. Pode ser que jamais se acostume completamente a ficar sem mim, mas eu vejo um olhar já diferente em você. Não existe crise que se eternize em sua agudez. Não existe espanto que dure uma eternidade. O que existe é a capacidade de vocês, humanos, de fazer da dor uma espécie de processo de iniciação. A dor da alma, para a vida humana, pode ser vivida como um ritual de passagem. E é assim que eu te vejo hoje. Você conseguiu fazer algumas adaptações aos seus dias, de forma que toda esta novidade pudesse ficar minimamente palatável. Você foi capaz de aprender a viver desta forma incômoda.

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Quando você era criança, aprendeu lá na escola os cinco sentidos: visão, olfato, paladar, audição e tato. O tato era o último, eu me lembro de ver você até se esquecendo dele quando tentava decorar a matéria para a prova. Tato. O sentido que acontece no maior órgão do corpo humano: a pele. Tato. Um dos sentidos mais vividos, um dos mais necessários à manifestação do afeto entre vocês. Nenhum Nostradamus seria capaz de prever que a vida humana pudesse ser convocada a eliminar o tato de várias de suas relações. Agora você é uma mescla de visão, olfato, paladar e audição. Como lidar com o vazio de mim em seu cotidiano? O que pode entrar no lugar do abraço que foi morar no futuro pós-pandemia?

Até você encontrar a resposta para essa pergunta, vale chorar, sentir raiva, morrer de medo, gritar de saudade, e, enquanto isso, continuar trabalhando e cuidando da casa e dos filhos, enquanto se encanta com a borboleta que entra de repente na janela da cozinha. Não há resposta simples para nenhuma ausência da vida. Ausência precisa ser sentida para, depois, a vida poder seguir adiante. Eu me transformei num dos lutos de seus dias.

Por isso eu quero te chamar para imaginar-me como uma metáfora. A metáfora, acessível a qualquer carteiro que encontra um poeta na praia deserta (leia “O carteiro e o poeta”, veja o filme, e lembre-se de mim na cena em que o poeta explica ao carteiro o que é uma metáfora, e se surpreende com a velocidade com que o seu amigo entendeu a ideia). Eu passo a ser, na ausência, uma metáfora de tudo o que eu representava para você. Pense com o seu coração: o que cada abraço queria dizer? Que palavras poderiam substituí-lo? Não há abraço que não possa ser traduzido em algumas palavras. Você tem acesso às palavras, agora escritas em mensagens, cartas ou ligações de vídeo. Elas continuam disponíveis como elementos que te ligam àqueles que você ama, de quem a saudade começa a apertar. Eu passo a ser, durante a pandemia, uma ilustração que condensa palavras, um símbolo que pode ser narrado por você como um deslumbre de amor.

Se você não conseguir em algum momento dizer o que eu represento para aquela pessoa, preste atenção nos seus olhos. Eles são livros. Eles contêm palavras que cantam. Seus olhos andam brilhando mais ainda quando a câmera do celular se abre, e você consegue estar com aquele alguém tão importante. Seus olhos são livros, têm o tom da poesia que comunica mais do que a palavra tem o poder de dizer. Então aproveite para ver. Sinta com os olhos. Deixe que eles abracem o mundo

Você pode abraçar também com um pão que você deixa para o amigo, entre máscaras e distâncias estranhas. Um pão é um símbolo que multiplica o afeto, que faz o amor reprimido virar mil gritos. E se não for o pão, pode ser um desenho de uma criança, uma lembrança que se grave em áudio, uma foto do passado repostada e cuja história passa a ganhar ainda mais significado.

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Deixo aqui um abraço do abraço

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Eu não deixei de existir em você. Eu continuo aí. Não sei como explicar, mas eu sou perda e presença, sou saudade e ação possível. A parte de mim que simplesmente usa o tato para se aproximar nos ombros, essa sim está aqui no futuro, aguardando o tempo de poder voltar até as ruas, agora vazias. Mas eu voltei pra te contar esta descoberta: eu passei a ser uma metáfora. O seu coração é um escritor de metáforas de mim. Você tem o poder de tomar a saudade para dançar, e fazer de mim uma nova imagem. Eu já vejo você abraçando com os olhos grávidos de palavras que não chegam a acontecer. Eu testemunho a sua força de dizer “eu te amo” de tantas formas, para tantas pessoas, sem que talvez tenha se apercebido de tamanha beleza.

Desde que nos distanciamos, eu vejo você se reinventando. Eu vejo você fazendo da minha ausência o espaço da criação de formas de se encontrar com quem você ama. Eu sinto o tamanho da sua dor, que é do mesmo tamanho do seu desejo de fazer da vida um lugar de absoluto sentido e significado. Eu vim aqui, então, para lhe agradecer. Foi você quem me fez entender meu novo formato. Foi através do seu coração derramado nos dias de quarentena que eu me vi metáfora. Obrigado por tanto. Você, no meio de tanta novidade e espanto, me entregou um espelho em que me enxergo ainda maior.

E, aqui, me despeço, neste futuro que, posso lhe garantir, é também a morada de outra carta deste livro. A esperança. Ela está aqui ao meu lado, sorrindo para tudo o que eu lhe escrevo. A esperança acaba de me dar as mãos. E, juntas, lhe daremos as boas-vindas ao futuro, quando for a hora precisa dele existir para você.

Por isso, deixo aqui um abraço do abraço. De todas as formas incríveis que você me inventou. Até breve, no futuro que você está esculpindo em metáforas, realidades concretas, desejos e sonhos que jamais se esquecem de existir.”

*Trecho do livro Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise, do psicólogo e terapeuta familiar, de casais e grupos, Alexandre Coimbra Amaral. Em pré-venda, o livro pode ser adquirido na Amazon.

 

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