“Agora é permitido sonhar”, diz professora que educa os alunos com poesia
Ela leva história e cultura afro-brasileira para os seus alunos da rede pública através do Sarau Heranças e foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10
“Nunca me foi permitido sonhar, ser médica, advogada, arquiteta. Não que essas profissões valham mais, mas me indago porque não me foi permitido com essas também sonhar? Faltava-me talento pra cantar, curvas pra dançar, branquitude pro chefe de escritório me contratar. Por mais que domasse o cabelo e minha cor de pele fosse de um marrom falhado, nossos corpos são facilmente identificados como sendo outro, oposto ao que está posto”.
Esse é o trecho do poema “Restituindo Sonhos”, da professora Lidiane Pereira da Silva Lima, 35 anos. Apesar de trabalhar com poesia desde 2018 com os seus alunos no Sarau Itinerante Heranças Afro, ela nunca havia escrito um ela mesma. Foi aí que seus alunos a cobraram um poema e ela aceitou.
Os versos autobiográficos falam sobre sua trajetória na educação, desde que foi aluna até se tornar professora, na escola EMEF Anna Silveira Pedreira, zona sul de São Paulo. Foi inevitável conter as lágrimas ao lembrar de sua história durante a entrevista a CLAUDIA.
“Eu sempre me vi como não tendo direito a sonhar, isso que marca tanto a infância e adolescência. Eu acho muito duro ser uma criança ou uma adolescente e ter consciência de que sua existência é limitada. É condicionada ao que uma sociedade excludente te oferece, que é muito pouco. Essa é uma das coisas que me movem para ser professora. O desejo profundo de transformação social, de mudar essa narrativa”, contou.
Lidiane quer ser o que ela não teve na escola pública, a fonte de conhecimento e de formação educacional, profissional e humana. “Eu sinto que até nisso a escola pública falhou comigo. Não pelos agentes ou as pessoas que atuam nela, mas por conta do sistema que molda essas instituições para a manutenção de modelo de sociedade que é racista, classista, machista”.
“Acho que essa experiência tão negativa com a escola pública como um sistema é o que me move a querer fazer tudo diferente. Como me vi tão limitada a sonhar, quero que eles vejam que podem, que eles devem ter direito a uma existência mais plena, que eles possam ocupar espaços que a mim não foi permitido”, disse a professora.
Antes de professora, aluna e tentante
Parecia não haver lugar que eu pudesse ocupar, que não aquele da moça que engravida aos dezesseis, cessa o estudar para do lar e do filho cuidar. Ou daquela que trabalha numa loja como atendente, e precisa engolir assédio do gerente, do cliente. Ou da garçonete que trabalha no restaurante, que com uniforme de repente se descobre não ser gente. Acreditava ser prisioneira do lugar que eu vivia, do dinheiro que não havia, e do amor filial que eu não tinha. Por pouco escapei de ser mãe aos 16. Os outros espaços visitei. E por mais que me parecesse caber neles, da minha imagem ornar bem com a paisagem. Eu sabia, pressentia… que era só uma passagem”.
Como uma aluna da rede pública com o coração cheio de sonhos, seu percurso até a universidade foi cheio de tentativas. As boas notas na escola não garantiram uma vaga na tão desejada USP, mas isso não a impediu de continuar acreditando. “Entrei em um cursinho popular chamado Educafro pra estudar. Ao longo dos anos que eu fui prestando a USP, percebi que as minhas notas aumentavam, mas nunca o suficiente pra me pôr lá dentro e acabei entrando em uma faculdade particular. Fui trabalhar nesses lugares que disse no poema, fui vendedora, garçonete, estudava à noite e depois fui pra escola pública”.
Há 13 anos atuando nas redes estaduais e municipais, Lidiane acredita na revolução com aqueles que são oprimidos, e o seu papel é despertar essa consciência em seus alunos. “O meu lugar é na escola pública e eu me identifico muito com esse espaço, com essas crianças, eu me vejo em cada uma delas porque eu sou uma delas e isso me move de uma maneira absurda”, disse ela, emocionada ao relembrar do seu passado.
Sarau Itinerante Heranças Afro
Os estudantes se apropriam da palavra e usam suas vozes para dizer tudo o que os poemas despertam em suas mentes. Através de um repertório de artistas e escritores negros, Lidiane embarca as crianças em uma aventura de reconhecimento da verdadeira história que não é contada nos livros de História.
Nascido em 2018, o Sarau Heranças Afro é trabalhado em três blocos temáticos. O primeiro, busca falar sobre a África e desmistificar a ideia de que o continente africano é um lugar de misérias e tragédias. O bloco dois é falado sobre o Brasil colonial, e no terceiro é dado um salto para discutir com os alunos o que é ser negro no século 21, estética, identidade e violência policial – tudo através da música, textos literários, sobretudo a poesia.
Utilizando poemas como “Gritaram-me Negra“, de Victória Santa Cruz, Preta Galáctica da poetisa Midria e Pixaim Elétrico de Cristiane Sobral, a professora busca promover reconhecimento das crianças com o eu-lírico. “Esse reconhecimento desperta nelas o mesmo desejo de transgressão de ruptura com esse ideal de branquitude que todas nós internalizamos algumas vezes na vida e que nas crianças isso está muito forte e presente”, argumentou.
Lidiane lembra de um episódio que aconteceu enquanto estudava esses textos e que promoveu uma grande transformação visual na vida de uma das alunas. “Micaele é uma criança negra de pele clara, que tinha as pontas dos cabelos alisados e a raiz crespa. Estávamos imersos nessas discussões e certo dia ela me mandou no WhatsApp uma foto com o cabelo cortado. Ela voltou toda feliz pra escola com o seu crespo, e eu reforcei o quanto ela estava linda, autêntica, verdadeira e quanto eu gostei do cabelo dela”, lembrou Lidiane.
Enquanto eles estudavam o poema “Gritaram-me negra”, Micaela contou que não sabia como era o seu cabelo natural, pois sempre alisou. Ela também contava sobre as falas agressivas de sua mãe a respeito do cabelo natural que acabara de descobrir e o incômodo que sentia quando os colegas da classe a zoavam e colocavam apelidos por causa do seu black power.
“E aí eu tenho um duplo sentimento: um pouco de culpa pelo estudo da temática e por ter a impelido a tomar essa decisão, que, de certa forma, estava causando grande sofrimento. Ao mesmo tempo eu percebia que se eu quisesse fortalecê-la na decisão de manter essa escolha, eu precisava fortalecer essa decisão de alguma forma, embora a gente tenha sempre discutido que alisar ou não era uma escolha dela”, declarou Lidiane.
“Eu tenho uma transformação não só na Micaele, mas em todas as meninas negras do projeto. No início, elas estavam sempre com o cabelo preso, com coque. No final do projeto esses cabelos estavam soltos e libertos, pra mim foi bastante incrível”, relatou ela, entusiasmada com os efeitos que o projeto teve na vida das crianças.
Além da estética
Outra mudança que Lidiane conseguiu promover nos alunos foi a apropriação da palavra. No início do Sarau, alguns alunos se recusavam a escrever porque acreditavam que não sabiam fazer ou falar bem. “Falo pra eles do nosso pretuguês, que é a língua portuguesa modificada por nossos ancestrais, essa variante informal. Eles não dominam a norma culta e por isso acreditam que não sabem fazer. Desconstruí essa relação hierárquica entre essas duas linguagens para mostrar que eles podem materializar o que sentem na linguagem que dominam”, esclareceu Lidiane.
“A partir dai eles começam a se apropriar da palavra. Acho esse movimento muito bonito de apropriação tanto da palavra pra entender o mundo, mas também para poder dizer o mundo a partir da sua própria perspectiva, vivências, experiências. Eles são novos mas tem muitas experiências, escrevem textos lindos”.
A Música usada de forma pedagógica
Lidiane contou que sua primeira consciência crítica de quem é e o lugar que ocupa, se deu através das músicas do grupo de rap Racionais Mc’s. Ela utiliza da didática que existe nas canções para enriquecer ainda mais as aulas.
“Tento resgatar por meio de músicas como a “Formula Mágica da Paz”, a história do nosso próprio território. A música vai trazer a questão do genocídio da população preta, que é o tema do nosso terceiro bloco que fala sobre violência policial. Me utilizo da música pra discutir a política com os alunos, acho que são temas cruéis e as vezes me pergunto se devo apresentar isso para eles”, contou.
“Mesmo que seja um soco no estômago, como foi pra mim, perceber ainda jovem que eu era uma pessoa oprimida, é justamente a consciência que vai despertar o desejo de transformação, então eles precisam saber que é pra justamente buscar no mundo um lugar melhor”, defende a professora, que tem formado cidadãos, que, futuramente, olharão para a sociedade de outra forma e não tolerarão nenhuma forma de opressão.
Projetando sonhos
“A periferia é um lugar de potência e transformação”. Foi com essa e outras ideias que a professora Lidiane conseguiu levar aos seus alunos um projeto enriquecedor, e, por conta do Sarau, ganhou o Prêmio Educador Nota 10. O prêmio, que foi criado há 22 anos, reconhece e valoriza anualmente professores e profissionais envolvidos da Educação Infantil ao Ensino Médio de escolas públicas e privadas de todo país.
A mudança, a transformação, o conhecimento e a cura que ela proporcionou aos seus alunos também aconteceu dentro de Lidiane. “Na medida que eu afirmava a condição delas enquanto sujeito epistemológico que produz saber e conhecimento, eu ratificava isso pra mim também. Digo que a nossa relação foi de troca, arrisco dizer que aprendi muito mais nesse processo do que talvez eu tenha ensinado. Não dá pra mensurar o valor e a importância disso. Diante de todo histórico de negação, as minhas várias experiências com conhecimento, tudo o que eu acendi nas crianças, acendi também em mim”, disse ela.
Embora tenha me faltado mãe, tenha me faltado pai, tenha me faltado conversa, tenha me faltado tanta coisa, nunca me faltou coragem. Nunca me faltou vontade. Vontade essa que ainda hoje me é latente, que me fez buscar o meu sonho por uma outra vertente. Aprendi desde cedo que pra se mover num chão que te prende. É preciso ser insistente, persistente. E agora, eu tinha um sonho. Meu sonho era me formar, letras estudar, professora me tornar. Para que outras crianças como eu, nunca mais fossem impedidas de sonhar”. Trecho do poema Restituindo Sonhos, de Lidiane Pereira da Silva Lima, professora de português da rede pública.
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