Canto de resistência: peruana Renata Flores usa o ‘quechua’ em sua música
Em entrevista a CLAUDIA, a rapper peruana conta que é fã da banda brasileira Natiruts e como resgata o dialeto indígena anterior aos Incas com canções pop
Renata Flores tem apenas 19 anos, mas já é uma estrela na América Latina. Fã dos brasileiros Natiruts, de Nina Simone, Adele e da espanhola Rosalía, ela é a mais velha de uma família com dois irmãos e estudou piano desde criança. Aos 14 anos, ganhou notoriedade em seu país ao participar da versão peruana do The Voice Kids, mas viralizou internacionalmente quando sua mãe, Patricia, decidiu postar no Youtube um vídeo de Renata interpretando a canção The Way You Make Me Feel, de Michael Jackson. O vídeo tem quase dois milhões de views, mas não foi apenas a linda voz de Renata que chamou a atenção e sim o fato de que ela cantou em quechua. “Minhas raízes me inspiram, meus antepassados, os ensinamentos que herdamos deles, a mulher andina e minha família, que me ajuda a seguir em frente”, ela diz em entrevista a CLAUDIA, em uma conversa virtual de casa, onde está isolada durante a pandemia.
Quechua é o dialeto nativo indígena mais antigo da América do Sul, anterior inclusive ao Império Inca, e que é falado por mais de 12 milhões de pessoas no continente. Além de Peru e Bolívia, onde é a língua oficial, pode-se ouvir quechua na Colômbia, no Equador e em algumas partes da Argentina e do Chile. O idioma não tem forma escrita e é ensinado apenas em linguagem oral, exatamente como Renata aprendeu de sua avó, Adalberta. Quando menina, Renata achava que seus avós e pais conversavam em código quando não falavam em espanhol, ou um idioma secreto para poder comentar mais abertamente sobre política ou falar de assuntos que não queriam que as crianças entendessem. O que começou como curiosidade para poder participar, aos poucos foi ganhando maturidade.
As primeiras versões no ‘idioma secreto’ dependeram da ajuda de Adalberta. Na época, Renata apenas queria cantar algo diferente, mas o sentimento rapidamente mudou e ela entendeu a importância de resgatar – e popularizar – o idioma de seus ancestrais. Hoje, Renata é uma das líderes do movimento do rap andino que busca resgatar e manter vivo o idioma original do continente.
Herança símbolo de resistência cultural
A avó de Renata, professora de quechua na área rural do Peru, fez parte do movimento de resistência para manter o idioma vivo através dos anos. A associação da língua à pobreza colaborou para uma rejeição cultural que ganhou força nas décadas de 1980 e 1990. Ela mesmo, Renata, não tinha aprendido porque muitas famílias não viam mais a importância, porém o sentimento mudou radicalmente com o passar dos anos. Hoje ela tem como meta resgatar o orgulho da cultura indígena através de suas canções, que têm letras sintonizadas com questões políticas do momento. Elas também mesclam instrumentos atuais com as típicas flautas peruanas, o que Renata reconhece ainda não ser uma unanimidade entre os fãs e críticos.
A cantora vive com os pais, em Ayacucho, uma pequena cidade a 600 km de Lima. Sua família tem grande importância em sua carreira e são os pais que a apóiam e ajudam na produção dos vídeos e gravações. De casa, Renata tem gravado vídeos para o seu canal no Youtube (fez uma versão de Bad Guy, de Billie Eilish, por exemplo) e conversou com CLAUDIA, sobre sonhos e carreira.
Como a música entrou em sua vida?
Desde que me conheço por gente (risos), porque graças à minha família, tudo à minha volta era musical. Particularmente a minha mãe, que formou uma associação cultural e me deu a oportunidade de estar em alguns projetos musicais. Com o tempo, criamos o projeto com quechua.
Como aprendeu a falar quechua, qual foi a dificuldade?
A primeira diferença com espanhol é a estrutura, porque a estrutura de quechua se parece com a do inglês. A outra diferença é que enquanto em espanhol temos 5 vogais escritas, quechua tem 3 vogais e 15 consoantes. A principal diferença para mim é que quechua é um idioma solidário que se preocupa com a outra pessoa, é mais amoroso e sentimental. Eu aprendi com as minhas avós e meus pais, mas sigo estudando no Instituto da Universidade de Huamanga – Ayacucho.
E como tem sido a reação à sua música, que faz parte desse movimento de resgate cultural?
Tem muita gente que gosta da fusão que estou fazendo e o fato de que o quechua esteja presente nela. Mas também há quem reclame que eu esteja usando a língua e a música tradicional andina com ritmos e gêneros mais modernos. Há uma mudança de mentalidade que vem crescendo pouco a pouco sobre o idioma quechua. Por muito tempo foi visto como sinônimo de pobreza e ignorância e ainda há pessoas que o discriminam.
Você canta sobre o empoderamento feminino e assuntos atuais. Quais são suas principais influências e preocupações?
Mulheres que se colocaram e lutaram por liberdade me influenciam. Assim como as que usaram a música como forma de protesto e fizeram visíveis a injustiça com mulheres e racismo. Eu temo muito pelo futuro incerto de muitas mulheres que estão desaparecendo em plena pandemia, me preocupa o futuro do planeta porque ainda não estamos entendendo que ele está sendo destruído por irresponsabilidade nossa.
E da música brasileira, o que mais ouve?
Eu adoro a banda Natiruts porque eles fazem fusão e sua música é quente. Eles me acalmam e me inspiram para fazer mais música.
Ser uma artista independente cria mais dificuldades, mas é também importante?
Sim, sou uma artista independente e é mais difícil, mas o esforço rende frutos. Temos cruzado caminhos com pessoas que nos dão apoio com esse projeto e estamos felizes com isso, nesses dias temos que ser autossuficientes. E o mais bonito e positivo é que quando se é independente, se pode ser livre para expressar sua arte.
E como tem sido com a pandemia? O que tem feito?
Tive que reinventar muitas coisas. Trabalho em casa, compartilho a música de casa e estamos aprendendo mais sobre tecnologia. Também estou gravando e compondo muita música para o meu primeiro álbum, que vai se chamar ISQUN, que é o número nove em quechua. O álbum terá nove canções e terá como protagonista a mulher andina em diferentes etapas da história do Peru.
E o que você espera transmitir através da música?
A mensagem de que nos orgulhemos de nossas origens e que não percamos nossa identidade. Que amemos nossa língua, nossa cultura, que respeitemos e valorizemos nós mesmos. Se possível, quero também dar visibilidade a problemas sociais para tentar ajudar a resolvê-los com a minha música. Resolver e ajudar tudo que um dia nos arrebatou e que foi silenciado.
Renata Flores gravou uma versão de Bad Guy, de Billie Eilish
Renata cantando The Way You Make Me Feel em quechua:
E Earth Song, também de Michael Jackson:
Em tempos de isolamento, não se cobre tanto a ser produtiva: