Filme ‘Entre Mulheres’ é um soco no estômago na sociedade patriarcal
Este poderia ser considerado um dos filmes mais bem dirigidos da temporada de premiações, mas incomoda demais para ganhar o reconhecimento
Até existem assuntos que talvez devessem ficar apenas “entre mulheres”, mas outros devem ser ouvidos por todos. Hoje, dia 2 de março, chega aos cinemas brasileiros o filme Entre Mulheres (Women Talking, no título original), indicado ao Oscar 2023. Podemos dizer que a produção foi levemente esquecida pelas grandes premiações, especialmente no que diz respeito às categorias técnicas com presença feminina. A diretora Sarah Polley merecia uma indicação como melhor diretora, pois faz um trabalho delicado e muito bem feito. Reconhecido pelo roteiro, baseado no livro da escritora canadense Miriam Toews, o longa foca em uma discussão de um grupo de mulheres que sofrem abusos e precisam decidir seu futuro dentro de uma comunidade religiosa e isolada.
Entre Mulheres é um filme que vai te levando para dentro, entregando apenas o essencial para que o espectador entenda seu real motivo. A princípio, ele nos apresenta uma atmosfera de época, onde as colônias rurais religiosas dominavam o mundo e a revolução industrial parecia uma realidade distante. A discussão é então apresentada – as mulheres deste meio estão sendo dopadas e violentadas sexualmente. Nenhuma está a salvo, seja qual for a sua idade. Lideradas por Ona (Rooney Mara), Salome (Claire Foy), Mariche (Jessie Buckley), Greta (Sheila McCarthy) e Agatha (Judith Ivey), elas passam a discutir três opções: perdoar seus agressores, deixar a comunidade ou ficar e lutar contra os abusadores.
É uma narrativa lenta, onde a retórica domina de uma forma bem engenhosa e te faz refletir sobre como o mundo é uma arapuca para as mulheres. Sem entregar muito mais da história, aos poucos vamos entendendo melhor o contexto de que ano este cenário está situado e que é uma realidade, ainda que fictícia, mais real do que deveria ser. Segundo a autora do livro, o romance é “uma resposta imaginada a eventos reais”. O caso é baseado no que aconteceu na colônia de Manitoba, uma comunidade remota na Bolívia, durante os anos de 2005 e 2009.
A produção aborda muitos temas e questões do universo feminino e pondera sobre a questão: como seria um mundo onde as mulheres e os homens fossem tratados de forma igualitária? Dentro disso tem ainda a fé, que é um dos divisores de água da trama. Essa comunidade coloca a religião acima de tudo, até mesmo de suas próprias escolhas. Toda a discussão delas é importante para a colônia e, principalmente, para os homens. Porque eles andam por este mundo como se fossem os donos e, infelizmente, ali ainda são. Estamos evoluindo, mas ainda resta muito chão e um longo caminho a percorrer.
A diretora Sarah Polley mostra o quanto é ideal ter um conhecimento da vivência do que é retratado na tela. A sensibilidade que ela leva ao filme dificilmente seria incorporada à história se fosse um homem por trás das câmeras. Polley joga o foco essencialmente na conversa das mulheres e não nas agressões que sofreram. Até porque, não é preciso chocar o público com elas – apenas algumas citações do que as personagens passaram conseguem nos impressionar e emocionar.
A força de Entre Mulheres vai muito além de estética, só que o longa também merece essa citação. O filme tem uma tonalidade lavada, quase preta e branca, o que diz muito sobre a história, que é dura e sem cor. Escuro e denso, tudo em seu entorno mostra que estamos vendo algo pesado, um uso muito inteligente da cinematografia.
Ainda que estejamos falando de uma produção pouco diversa, já que o elenco inteiro é indiscutivelmente branco (mesmo que inspirado em um fato que correu na América Latina), Entre Mulheres traz uma proposta absurdamente importante. Pode ser que seja um debate cíclico, mas é relevante.
Entre Mulheres e as premiações
Entre Mulheres rompe a bolha, incomoda, e esse talvez, seja um dos principais motivos de ter sido “notado” apenas nas categorias de melhor roteiro adaptado e melhor filme no Oscar 2023. Deixando de lado outras tantas nomeações que poderia ter. Sim, o melhor filme é importante, mas a falta de mulheres em funções técnicas é onde Hollywood mais erra – e vai continuar errando.
Vamos lembrar que, novamente, em 2023 não há presença feminina em Melhor Direção. Até hoje – em 95 anos de Oscar – apenas duas diretoras levaram a estatueta, Chloé Zhao (Nomadland) e Kathryn Bigelow (Guerra ao Terror). E nunca houve uma mulher premiada em direção de fotografia: apenas três foram indicadas, em toda a história – este ano, Mandy Walker concorre por Elvis. Estamos na torcida para que algumas coisas mudem.
Entre Mulheres é um reflexo de que Hollywood pode mudar, só que é preciso ter em mente que essa mudança vai demorar – o que deixa, de fato, um sabor amargo na boca. Mas são filmes como este que nos fazem perceber que história de mulheres estão ganhando mais presença e há sim espaço para explorar a representatividade e a consciência do que é ser mulher dentro de uma sociedade machista.