Maria Fernanda Cândido revela longo preparo para ‘A Paixão Segundo GH’
Atriz reflete sobre a mensagem do filme e pontos de conexão entre si e a personagem
‘A Paixão Segundo GH’, sem dúvidas, é uma das obras mais complexas de Clarice Lispector. Aliás, pensar em uma adaptação cinematográfica para o livro pode soar como uma grande impossibilidade. Contudo, nas mãos do diretor Luiz Fernando Carvalho e da atriz Maria Fernanda Cândido, a profunda história de Lispector consegue se transpor às telonas com uma impressionante naturalidade.
O filme, que chega hoje (11) aos cinemas brasileiros, aborda tanto o momento em que tomamos consciência de nossa própria individualidade quanto as falhas estruturais que sustentam a exclusão de inúmeros grupos sociais.
Nem é necessário dizer que, assim como a obra literária, o longa conversa de maneira intensa com os tempos atuais.
Pensando nisso, batemos um papo com Luís Fernando Carvalho e Maria Fernando Cândido, que além de revelar detalhes de bastidores e inspirações para o projeto, também refletem sobre as temáticas abordadas em tela. Confira:
CLAUDIA: Você já estava familiarizada com A Paixão Segundo GH antes de receber o convite para atuar no filme? Qual é a sua conexão com a obra?
Maria Fernanda Cândido: Eu já havia lido antes, aos 28 anos. Por acaso, ganhei o livro de presente do Luiz Fernando após o final das gravações da novela ‘Esperança’. Aliás, esse foi o nosso primeiro trabalho juntos. Lembro dele me dizer: ‘Acho que você vai gostar, Maria’. A obra, sem dúvidas, mexeu bastante comigo. Foi muito impactante. Seguimos fazendo vários projetos depois desse momento. Então, após filmarmos ‘Capitu’, Luiz me convidou para fazer GH.
Fiquei muito agraciada, claro, por ele ter pensando em mim, mas também senti medo, pois eu tinha lido a obra e sabia do que se tratava. Portanto, tive esse susto inicial. Porém, a sensação predominante foi de absoluto encanto e fascínio. Quando aceitei, devia ter uns 35 anos.
Passado esse convite, passaram-se muitos anos e não falamos mais desse assunto. Foi só após muitos projetos juntos que ele me ligou, em 2017, e disse: ‘Olha, chegou a hora: vamos filmar A Paixão Segundo GH’. Então, começamos o laboratório. Nos preparamos por um ano num galpão na Lapa, em São Paulo, para rodarmos o filme apenas em outubro de 2018.
CLAUDIA: De onde surgiu o ímpeto para adaptar uma das obras mais complexas de Clarice Lispector?
Luiz Fernando Carvalho: Primeiro, eu não gosto do termo ‘adaptação’. Sou radicalmente contra se tratando de uma literatura que tem os seus espinhos, que tem a sua estranheza poética. Portanto, eu não acredito em uma mediação. Não sinto necessidade de colocar nenhuma adaptação entre a lente e a literatura. Eu gosto desse contato com a coisa toda viva mesmo.
O primeiro momento veio de outro filme meu, Labor Arcaica’, baseado na obra de Raduan Nassar. Há uma personagem chamada Ana, vivida por Simone Spoladore. Ela não tinha uma única palavra, então, durante a montagem, senti a necessidade de criar um subtexto para as ações de Ana.
Por isso, eu gravei, utilizando a minha voz, alguns trechos de ‘GH’, utilizando-os na montagem como subtexto de Ana, pois acredito que ambas as personagens têm um discurso embebido de uma radicalidade impressionante contra o sistema patriarcal. Foi aí que comecei a investigar mais a fundo as entrelinhas da obra de Clarice. Mas sem o objetivo de filmar o livro. Era apenas uma interpolação de literaturas, de personagens, que me pareciam uma espelhar a outra.
CLAUDIA: Como foi o processo de capturar o estado mental dessa personagem?
Maria Fernanda Cândido: Nunca tive a pretensão de capturar nada. Eu não usaria esse verbo. Eu diria que me ofertei. Me disponibilizei para essa experiência de percorrer a trajetória de GH.
CLAUDIA: Qual você acredita ser a mensagem mais poderosa deste longa?
Maria Fernanda Cândido: Fazer esse filme e me aprofundar nessa obra me fez confiar mais no mundo e na própria vida. Passei a acreditar neste caminho que, embora desconhecido, só pode ser percorrido por mim mesma.
CLAUDIA: Como você acredita que a temática tanto do livro quanto do filme se conecta aos tempos que vivemos hoje?
Maria Fernanda Cândido: O livro, assim como o filme, são absolutamente atuais. Poderiam ter sido escritos ontem. Temos essa questão da existência feminina, que durante os anos sessenta, era confrontada por um mundo feito pelos homens (e para os homens).
Mas além desse confrontamento que a GH vai viver, ela antes esbarra na questão da luta de classes, da racialidade, da invisibilização de grupos excluídos e explorados. Há essa representação dos oprimidos através da figura da barata, considerada imunda, abjeta. Inevitavelmente, nós acabamos nos identificando com esse lugar, pois ser mulher neste mundo, especialmente da maneira em que ele é posto, acaba sendo uma experiência desafiadora.
CLAUDIA: Me conte sobre a concepção da linguagem visual do filme. Acredito que, através da estética e fotografia, você foi capaz de capturar a atmosfera densa do livro.
Luiz Fernando Cândido: Eu sempre parto de uma tela em branco quando o assunto é visualidade. Não venho com nenhuma referência de filmes. Talvez o que tenha me interessado, em um primeiro momento, foi uma certa atmosfera do período dos anos sessenta. Porém, eu não trago nenhum pressuposto cinematográfico. Pego na mão da própria Clarice, pois está tudo ali nas entrelinhas: a sensação de cor, a densidade. A ideia da claricidade de Clarice.
Esses temas, que muitas vezes são tratados de forma obscura, com a luz baixa, são manejados de maneira contrária no filme: quis uma iluminação bem aberta, para que a claridade entrasse por temas espinhosos, como preconceitos e a própria exclusão do feminino em um universo de cosmopolítica que foi há séculos erguida por homens e para homens.
CLAUDIA: Você encontra pontos de conexão entre você e a protagonista do filme?
Maria Fernanda Cândido: Como mulher, não há como não se identificar com essa personagem. Talvez não em todas as questões, mas em boa parte delas. Existe uma frase no livro que diz: ‘GH é a mulher de todas as mulheres’. Ali, inevitavelmente, toda e qualquer mulher irá encontrar um ou outro, se não vários, pontos de identificação.
CLAUDIA: Qual é a sua obra favorita de Clarice Lispector? Por quê?
Maria Fernanda Cândido: ‘A Paixão Segundo GH’ e ‘A Hora da Estrela’. Esse último foi o meu primeiro contato com a obra de Clarice. Eu tinha 17 anos e foi a minha porta de entrada para esse universo tão fascinante e encantador.
CLAUDIA: Se você pudesse escolher um livro para protagonizar uma adaptação cinematográfica, qual seria?
Maria Fernanda Cândido: Atualmente, estou num trabalho de pesquisa para uma adaptação sobre uma mulher fascinante que viveu há muito tempo. Assim que eu puder, vou contar! Por enquanto, é segredo.