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Lia de Itamaracá, rainha da ciranda: “Ainda quero ver onde posso chegar”

Mestre cirandeira que conquistou o mundo com sua arte ganha homenagem em exposição no Itaú Cultural, em São Paulo

Por Joana Oliveira
23 abr 2022, 10h22

Maria Madalena Correia do Nascimento se apaixonou por música escutando o mar que banha a sua ilha, Itamaracá, em Pernambuco. Aos 12 anos, outras ondas, as do rádio, levaram até ela a ciranda que reinava na capital, Recife. E aí o enamoramento foi completo. Ali começou a nascer Lia de Itamaracá, compositora e cantora, mestra cirandeira que levou essa música e sua arte não apenas para o resto do Brasil, mas para todo o mundo. Aos 78 anos, ela é homenageada na 55ª Ocupação Itaú Cultural, em cartaz até 11 de julho em São Paulo. Além da exposição com fotos, vídeos, figurinos e documentos de sua trajetória, a programação tem uma mini temporada de shows da artista, a primeira neste fim de semana, o primeiro com o repertório do disco Ciranda de Ritmos (2008), e o segundo de 28 de abril a 1º de maio, no qual ela apresenta o álbum Ciranda Sem Fim.

“Me apaixonei pela música aos 12 anos. Aos 19, assumi a responsabilidade e o sonho de cantar. E realizei esse sonho. A música, em mim, entra com muito carinho. Eu sou muito alegre, gosto de cantar e de ouvir os outros cantarem, pois acredito mesmo que quem canta, seus males espanta. O canto é uma alegria”, diz Lia, em entrevista a CLAUDIA. No teatro vazio onde prepara o ensaio das apresentações, a presença de Lia enche todo o espaço. Com a postura muito ereta, os longos cabelos trançados e enfeitados com uma tiara bordada com paetês prateados, ela se senta e começa a falar, sempre pausadamente e com um sorriso nos lábios.

Na ilha cujo nome ela pegou para si, não existia ciranda praieira antes que ela própria a levasse para lá. A música que a enfeitiçou pelo rádio, em 1969, de Teca Calazans, coincidentemente se chamava Essa ciranda quem me deu foi Lia, e sua letra cantava: “Eu estava na beira da praia / ouvindo as pancadas das águas do mar / Essa ciranda quem me deu foi Lia / que mora na Ilha de Itamaracá”. Foi o suficiente para que Lia se animasse a frequentar o Pátio de São Pedro, onde se reuniam os cirandeiros recifenses. “Quando comecei a cantar, já queria ser famosa”, lembra ela, que minimiza o fato de ter sido uma das primeiras mulheres a reivindicar a própria voz numa arte, até então, dominada por homens. “Esse dom foi Deus que me deu. E, na verdade, nunca existiu ciranda sem nós. Sempre foram as mulheres que fazem a roda da ciranda.”

Lia de Itamaracá

Se bem não notou o peso do machismo em sua trajetória, o racismo sempre esteve presente. Lia lembra que, na primeira vez que saiu de Itamaracá para se apresentar no Rio de Janeiro, ouviu: “Com tantos cirandeiros bons, foram buscar aquela nega lá em Itamaracá?” “Esse homem, também do meio da cultura, desejou que o avião caísse e eu não chegasse lá. Mas a gente não vai se curvar nem abaixar a cabeça para o racismo. Vamos olhar para a frente, não para trás. Eu sou gente igual a você, sempre pensei assim. Se o sangue do branco é vermelho, o meu é vermelho também. E tem branco que vai para a cama de hospital ser salvo por sangue negro. Então para que esse racismo besta?”, questiona ela, sábia.

Inspirações e sonhos realizados

Uma entre os 18 filhos de seus pais, Lia de Itamaracá foi a única da família a querer ser artista. E o seu mar é imenso. Além de cantora e compositora de um gênero considerado Patrimônio Cultural do Brasil, ela dialoga com outras linguagens artísticas, das artes visuais ao cinema, da moda à gastronomia. Entre 2003 e 2019, ela participou em pelo menos seis filmes, desde o curta-metragem Recife Frio, dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça, também diretor de Bacurau (2019), no qual Lia interpreta Dona Carmelita.  Ela ainda protagonizou o  curta documental Formiga Come do Que Carrega, do diretor Tide Guglian, e fez uma participação especial no premiado Sangue azul, sob a direção de Lírio Ferreira, em 2014. “O que eu mais queria era estar em tela de cinema. Esse foi outro sonho realizado”, sorri.

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Com a estética marcada pelos muitos anéis que leva em ambas as mãos e pelos longos vestidos rodados e coloridos, Lia sempre foi vaidosa. Desde menina, gostava de roupa bonita e perfume. Durante a conversa com CLAUDIA, lamentou que o esmalte das unhas (cuidadosamente pintadas com bolinhas de muitas cores) estivesse descascado. “Eu gosto de mudar as unhas toda semana. Gosto de me vestir e me ver bonita. Quando subo assim no palco, me sinto com 18 anos, não com os 78 que já tenho”, revela.

Detalhe dos anéis de Lia de Itamaracá
(Itaú Cultural/Divulgação)

Lia diz que sempre se viu bonita, porque foi uma criança que recebeu muito amor e carinho. “Graças a minha família, aprendi o amor próprio. Me olho no espelho e gosto muito de mim. E só quando você aprende a se amar é que consegue gostar dos outros também”, ensina.

Durante o confinamento da pandemia de covid-19, ela pode exercitar sua arte e sua vaidade em lives e ensaios fotográficos para capas de revista. Fez show com Carlinhos Brown em Salvador (BA) e lá também gravou cenas de um filme com Bruno Gagliasso. E, entre tantos compromissos, não deixou de compor. “Eu me inspiro nas ondas do mar. Chego na beira da praia e escrevo na areia, vem uma onda e apaga, eu escrevo de novo… Quando a onda vai que volta, a música já está pronta. Com Iemanjá me ajudando, que eu sou filha dela”, conta.

A artista se sente grata pelo reconhecimento que recebe em todo o mundo —”Receber uma homenagem dessas, como a do Itaú Cultural, é um sonho que não vai acabar mais nunca, jamais vou tirar isso da minha cabeça”, diz—, mas jamais pensou em deixar sua ilha. Ela conta que o amigo Reginaldo Rossi sempre ia visitá-la em Itamaracá e lhe aconselhava a sair de lá para ter uma carreira mais próspera. Lia nunca aceitou. “É na ilha que eu me inspiro, é na ilha que estão minhas raízes, minha humanidade, minha família. Não posso abandonar minha ilha. Eu saio, rodo o mundo e volto para lá”.

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Lia de Itamaracá
(Itaú Cultural/Divulgação)

É também em Itamaracá que ela luta para transmitir a arte da ciranda para outras gerações. Num espaço cultural que leva seu nome, organiza aulas de percussão, canto e dança. “É bom ter esse povo tudo junto para ver se eles chegam pelo menos na metade do caminho que eu trilhei. Os mestres e mestras da cultura têm que se unir e se dar as mãos, porque a união faz a força. É Só assim vamos manter vivas as tradições da arte popular do Brasil”, garante.

Esse papel de educadora cultural ela já desempenhava quando ainda era merendeira numa escola pública da ilha: enquanto trabalhava dois turnos para alimentar 270 crianças, conseguia achar tempo para levá-las ao galpão do colégio e ensiná-las a cantar e dançar. “Eu estava mexendo uma panela e, dali, saía uma música. Quando eu tenho tempo, ainda vou lá. Faço uma festa”, ri. Ela diz que, até hoje, ainda não se cansou de trabalhar. “Todo dia peço forças a Deus para continuar. Ainda quero ver onde posso chegar”, diz. Seus admiradores engrossam o coro dessa prece. Porque, como diz uma de suas músicas, a ciranda de Lia não é dela só.

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