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‘Ausência’: fotógrafa registra em livro cartas entre mães presas e filhos

Nana Moraes criou um projeto de correspondência fotográfica para reconectar presidiárias com suas famílias e paliar a dor e a solidão atrás das grades

Por Joana Oliveira
21 jul 2022, 08h28

“Sem data para não virar passado”. Foi assim que Tatiane, na época com 25 anos e detenta no Presídio Nelson Hungria, em Bangú, no Rio de Janeiro, começava a carta para o mais velho de seus quatro filhos. A frase é uma das mais marcantes do livro Ausência (Nau Editora), da fotógrafa Nana Moraes, que retratou, em 2015, 16 mulheres encarceradas para entregar suas imagens e cartas aos seus filhos e parentes que não viam há muito tempo. Junto com os retratos feitos em um fundo de céu azul, foram enviadas 27 cartas destinadas a 56 bebês, crianças, adolescentes, homens e mulheres. Alguns responderam de volta, autorizaram Nana a entrar em suas casas e fotografá-los, dessa vez para presentear as presidiárias com memórias atualizadas de seus entes queridos. Estabelecia-se, assim, a correspondência fotográfica que deu vida ao que primeiro virou exposição em 2017, para agora tornar-se livro.

Nele, além da história de Tatiane, estão as vidas de Sueli, mãe de 12 filhos, condenada a 12 anos de prisão; de Vanessa, que pariu o caçula dos quatro filhos algemada e teve que confiá-lo aos cuidados de uma amiga ex-detenta; de Damiana, cujo menino mais velho foi encaminhado para adoção sem que ela sequer soubesse ou autorizasse; de Giselle, que também teve uma menina levada para adoção e outra que a viu ser presa em casa, nas primeiras horas da manhã; de Cristiane, que sonhava em ver a festa de debutante da filha de 15 anos; de Ozana, que alcançou a liberdade e pode se reencontrar com os quatro rebentos adultos no interior do Paraná.

A população carcerária feminina no Brasil é de 37.828 mulheres, de acordo com dados de 2021 do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Cerca de 80% delas são mães. “Essas mulheres, na verdade, respondem por mais do que os crimes que cometeram. A maioria é chefe de família e, quando vai presa, essa família se destrói”, conta Nana a CLAUDIA. 

Diferente do que acontece nos presídios masculinos, as visitas são poucos frequentes nas prisões ocupadas por mulheres. De acordo com Nana, muitas delas são presas em trânsito, ou seja, fora de suas cidades ou estados de origem, e suas famílias nem fica sabendo ou não têm dinheiro para visitá-las. “Também é frequente que as próprias mulheres não queiram os filhos ou familiares naquele ambiente, por conta de constrangimentos como a revista íntima, mas a realidade é que muitas são abandonadas, principalmente pelos companheiros. A mulher que comete um erro é ainda mais criticada e recriminada, não é mesmo?”, diz a fotógrafa.

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E esse estigma parece unânime em todos os estratos sociais. Ausência é o segundo volume da trilogia DesAmadas, iniciada por Nana com Andorinhas, livro lançado em 2011 com histórias e retratos de cinco mulheres que se prostituem nas estradas brasileiras. “Muitas delas diziam ‘sou puta, mas pelo menos não sou criminosa’. Esse é um exemplo do quanto a mulher que comete um delito é marginalizada”, comenta.

Página de 'Ausência'.
Página de ‘Ausência’. (Nana Moraes/Reprodução)

Essa marginalização se estende às pessoas que elas deixaram para trás. Ao adentrar a vida doméstica dos filhos, mães, amigas das presidiárias, Nana encontrou abandono, pobreza e, é claro, muita saudade. As lágrimas ou sorrisos tristes das crianças eram o maior testemunho disso. “Mamãe, eu te amo”, disse uma menina assim que viu o gravador da fotógrafa em sua casa. “O que eu vi são vidas rasgadas”, resume Nana.

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Essa percepção foi justamente o que a motivou a bordar ou costurar 94 páginas de fotografias e trechos das cartas e relatos dessas mulheres. “Me inspirei nas arpilleras chilenas, que contavam histórias da ditadura no Chile com bordados em sacos de batata e outros tecidos”, conta. Ausência virou, então, mais que uma exposição ou um livro, uma espécie de colcha de retalhos. Ou uma cortina. Ou uma toalha de mesa. Elementos da vida doméstica aos quais as presas perderam direito.

Enquanto costurava e bordava, revisitava as histórias e pensava no quanto as pessoas se recusam a sequer pensar na realidade dessas mulheres. Porque nosso sistema judiciário e carcerário é pensado para essa despersonalização, para nos fazer perder qualquer sentimento humano em relação à pessoa presa”, critica Nana.

Praticamente todas as histórias registradas e contadas pela fotógrafa contrariam decisões judiciais como o habeas corpus coletivo nº 143.641/2018, que garante prisão domiciliar a presas gestantes ou mães de crianças até 12 anos, ou a Lei nº 13.434/2017, que proíbe o uso de algemas em mulheres durante o trabalho de parto ou que acabaram de dar à luz. “Justiça não é vingança. Nós esquecemos disso. Justiça não é vingança”. Nana insiste na frase que há que ser lembrada sempre. E, como a carta de Tatiane, sempre sem data para não virar passado.

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