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“O sistema reforça estereótipos e preconceitos de raça e classe”

Karine Vieira, 34 anos, explica como seus privilégios enquanto mulher branca e de classe média contaram para que sua história fosse diferente

Por Isabella Marinelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 8 jun 2017, 18h17 - Publicado em 20 fev 2017, 20h38

Karine Dias Vieira nos recebeu com um sorriso no rosto na sede do Grupo Cultural AfroReggae, em São Paulo, onde trabalha. Fundado em 1993, ele é uma organização não governamental com a missão de promover a inclusão por meio da arte e da educação.

Entre os projetos desenvolvidos por ele, funciona o Segunda Chance, no qual a jovem de 34 anos assiste a coordenação. Ele auxilia egressos do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro e de São Paulo a se posicionarem no mercado de trabalho, atuando como uma ponte entre essas pessoas e as empresas contratante, através do envio de seus perfis a vagas compatíveis. O sigilo é um direito: ninguém além do responsável pelo setor de Recursos Humanos do contratante tem as informações dos antecedentes da pessoa – proposta que tenta combater a estigmatização e o preconceito.

A jovem afirma que recebe, consideravelmente, mais homens do que mulheres – segundo ela, um reflexo da quantidade absoluta de egressos, mas também da capacidade feminina de adaptação a outros empregos, especialmente aqueles que são informais. Internet, conversas com outras participantes e a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo são as principais vias de informação das candidatas.

Foi neste projeto que Karine também se encontrou. Nos primeiros anos da década de 1990, quando ainda beirava os 13 ou 14 anos, a paulistana se envolveu no tráfico de drogas. Aos 16, saiu de casa e então passou “por todos os artigos, menos homicídio”, segundo suas próprias palavras. Parou de estudar antes de terminar o colegial e teve sua primeira filha aos 18. O relacionamento com o pai da criança acabou rápido e Karine cuidou da menina até ela completar três anos de idade.

Na época, desempenhava uma função bem remunerada na extinta companhia aérea Varig. Porém, o mau comportamento, a irresponsabilidade e o uso recreativo de drogas a fez perder o emprego durante um suposto corte de gastos da empresa. Por motivos também financeiros, precisou devolver a casa em que morava para a família. Contudo, recusou-se a morar novamente com a mãe, foi obrigada a se mudar e deixar a filha com a avó — responsável pela sua criação até hoje.

A história de Karine não é de alguém que sempre viveu às margens dos grupos sociais ou que apresenta alto nível de vulnerabilidade, como acontece com a maior parte das custodiadas brasileiras. “Tenho consciência de meu lugar privilegiado na sociedade. Sou branca e de classe média. Essas características não são maioria na cadeira”, reflete.

Entremeios

No tráfico, ela era responsável por gerenciar grandes carregamentos de drogas. Passou, então, a ser investigada pelo DENARC, o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico de São Paulo.

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Apesar de coordenar movimentações de cargas para o interior do Estado, foi pela presença constante nas duas comunidades próximas à sua casa que as investigações bateram na porta. “O departamento de investigação reforça estereótipos e preconceitos de raça e classe”, explica. “Por morar em regiões mais abastadas, ter o status de classe média alta, acreditaram que eu fosse a fornecedora, o alto escalão”, continua.

Em uma ação surpresa, o apartamento de Karine foi invadido e os policiais encontraram drogas no local. Após negar os “acordos” de valores astronômicos, como são conhecidos os subornos oferecidos pelos policiais para atenuar as condenações, foi enquadrada no artigo 33 da Lei de Tóxicos nº 11.343/06.

Foram cinco meses detida no DACAR IV — apelido da antiga Cadeia Pública de Pinheiros, também conhecida como Cadeião — esperando julgamento. Das unidades do DACAR, duas abrigavam mulheres, embora não fossem projetadas para as mesmas. Entre os anos de 2005 e 2006, época em que foi presa, as unidades tinham 512 vagas, mas estavam com cerca de 1260 presas, segundo dados da Pastoral Carcerária. Neste período, a administração estava passando da SSP (Secretaria de Segurança Pública) para a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária). Na época, estavam em curso no espaço algumas reformas e transferências. Além disso, eram os primeiros dias de funcionamento do atual Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros.

Apesar dos conflitos familiares, Karine não reclama da educação e do apoio financeiro que recebeu nesta época. Inclusive, foi seu pai quem pagou o advogado particular para defendê-la. No dia do julgamento, foi absolvida: “As substâncias encontradas em seu lar não eram de sua alcunha”, “Os depoimentos dos policiais também eram inconsistentes”, diziam alguns trechos do julgamento. Voltou para casa e para o tráfico. Não só para o gerenciamento de cargas, como também passou a desempenhar diversos outros trabalhos.

“Nossa justiça criminal persegue acusados de roubo e tráfico. Geralmente pobres, de periferia e negros. Se você se enquadra no estereótipo, é muito difícil se defender e reduzir a pena. Os juízes tratam quase como uma fórmula matemática. Por outro lado, se não é o seu caso, é quase natural dizer que você então pode confiar no racismo do sistema”, argumenta o advogado criminalista Gabriel Thompson, de São Paulo.

Vida que segue

No ano seguinte, Karine conheceu seu marido. Preso desde 2001 e condenado a 33 anos de reclusão, a previsão é de que sua condicional saia apenas em 2023. Foi amor à primeira visita: “Depois da primeira visita, nunca mais larguei”, relembra Karine com uma risada tímida. Casaram-se entre grades e tiveram dois filhos.

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“Saí do crime para dar uma vida digna a eles. Não gostaria de viver sob o medo de ser presa ou morta”, conta. Por incentivo da tia, com quem morava, retomou os estudos também. Completou o Ensino Médio pelo ensino supletivo e conseguiu bolsa integral na faculdade pelo PROUNI (Programa Universidade para Todos), onde cursou Assistência Social.

A primogênita ainda vive com a avó. O segundo filho, Ryan, tem nove anos e já visita o pai na cadeia há algum tempo. Lucas, o menor, que tem apenas três, ainda não passa pelo “cansativo processo do dia de visita”. Além de muito novo, nasceu com problemas respiratórios, que representam um empecilho para a longa jornada que se inicia já na madrugada dos domingos. Por enquanto, nenhum dos dois sabe a sentença do pai — três homicídios dolosos.

A paulistana faz parte dos 65% de mulheres que visitam seus homens presos, segundo dados da Funap (Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel). Essa estatística cai para 18% quando são elas que estão entre as grades. Ela também compõe o grupo de 87% de mulheres que cuidam dos filhos de pais encarcerados, contra apenas 19% de homens que assumem a guarda das crianças cujas mães estão presas.

É no Afroreggae que une a vivência de cárcere à capacitação profissional, e consegue ajudar centenas de pessoas a se (re)inserirem no mercado formal de trabalho. No momento, ela colabora como voluntária, pois o projeto atravessa grandes dificuldades financeiras. Para sustentar sua família, conta com o aluguel de uma casa do companheiro e complementa a renda com as atividades de assistencialismo social que desenvolve em outras duas empresas, sendo uma delas a PanoSocial.

Sonha que o Segunda Chance prospere e se estabeleça com solidez, e que possa abraçar seu marido para que ele estude e trabalhe também. No futuro, quem sabe.

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