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Psicanalista e pesquisadora de literatura na Universidade de São Paulo, @fabianesecches escreve, dá aulas e traduz livros.
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Eu, você, nós

A literatura como exercício de alteridade e um pedido para o mês de outubro

Por Fabiane Secches
Atualizado em 28 set 2022, 17h21 - Publicado em 28 set 2022, 09h28

Em 2019, a escritora polonesa Olga Tokarczuk esteve na Suécia para uma leitura especial, em comemoração ao Prêmio Nobel recebido. Na ocasião, ela leu um texto intitulado “O narrador sensível”, em que conta um pouco de sua experiência como leitora, desde as primeiras narrativas ouvidas na infância, principalmente as histórias lidas ou contadas pela mãe. Fala da história de um bule desprezado pelas pessoas quando perdeu a alça e da má impressão que essa insensibilidade humana causou na menina que um dia foi. Conta ter visto uma fotografia antiga da mãe com o olhar triste e perguntado a ela depois, muitas vezes, de onde vinha aquela tristeza. A mãe respondia que era saudade da filha ainda não nascida, e assim fazia uma dobra no entendimento do tempo e do espaço.

Talvez por herança dessas conversas com a mãe, Tokarczuk hoje questione o estado preconcebido de todas as coisas, enquanto fala da importância da literatura ao possibilitar a transmissão de experiências que conectem pessoas de diferentes lugares, tempos, idiomas e culturas; é a esperança de uma ponte que pode ser construída. Celebra singularidades, mas também abre espaço para a coletividade e a experimentação: “Fico feliz ao saber que a literatura tenha mantido maravilhosamente bem o direito a todo tipo de excentricidade, fantasmagoria, provocação, paródia e loucura”, diz ela.

Tokarczuk lembra que estamos conectados à comida que comemos, à roupa que vestimos, aos livros que lemos. Estamos conectados às pessoas que amamos e às que vivem do outro lado do planeta, também às que viveram ou viverão em outras épocas. Somos responsáveis por rios, oceanos, plantas, animais, por toda a gente. Somos responsáveis pelo mundo, na melhor e mais importante acepção da palavra responsabilidade. Somos responsáveis porque somos parte. “Por isso, acredito que devo escrever como se o mundo fosse uma entidade viva e única se formando constantemente diante dos nossos olhos, e como se nós fôssemos ele — uma pequena potência — uma partícula”, argumenta. Por entidade única, não me parece que ela quis dizer uniforme, mas interligada.

Essa afirmação de Tokarczuk me faz pensar em Ailton Krenak, um dos principais pensadores brasileiros contemporâneos, e no poder que as palavras têm de conectar uma escritora branca, que vive na Europa Central, a um líder indígena da região do Rio Doce, no interior do Brasil: “[…] fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós somos outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza”, diz Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo.

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Penso ainda em Toni Morrison, escritora negra que viveu nos Estados Unidos, também laureada com o Nobel de Literatura — em especial, na antologia de ensaios A origem dos outros, sobre “as possibilidades e responsabilidades da literatura”. Para Morrison, o “risco de sentir empatia pelo estrangeiro é a possibilidade de se tornar estrangeiro”. O exercício de alteridade se torna cada vez mais difícil num mundo que prefere espelhos. O exercício de horizontalidade, cada vez mais difícil num mundo que prefere hierarquias.

Mas Tokarczuk defende uma forma de olhar que mostra “o mundo vivo, vivido, interconectado, cooperando e pertencente a si mesmo. A literatura é construída sobre uma ternura sensível em relação a qualquer um que não sejamos nós mesmos. […] Graças a essa ferramenta milagrosa, o meio mais sofisticado da comunicação humana, nossa experiência pode viajar pelo tempo chegando naqueles que ainda não nasceram, mas que um dia recorrerão ao que escrevemos, às narrativas que contamos sobre nós mesmos e sobre nosso mundo”.

Cada qual à sua maneira, esses autores atribuem à riqueza e à pluralidade das narrativas uma potência de antídoto contra a forma de vida globalizante da atualidade — que, na verdade, segmenta, homogeneíza, exclui.

Tokarczuk acredita que somente “a literatura é capaz de nos aproximar com mais profundidade da vida do outro, entender suas razões, compartilhar suas emoções e vivenciar seu destino”. A autora exalta a potência literária de apresentar diferenças e expandir sensibilidades. Para Krenak, a “provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.

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Pensando nisso, convidamos um grupo de autores que admiramos muito, com formações, experiências e estilos literários diferentes, para escrever ensaios que reúnam dois temas — literatura e Antropoceno — que consideramos fundamentais para adiar o fim, ou pensar em perspectivas para Depois do fim, título da antologia que os reúne. Temos ensaios de Ana Rüsche, Aurora Bernardini, Christian Dunker, Daniel Munduruku, Giovana Madalosso, Itamar Vieira Junior, Maria Esther Maciel, Micheliny Verunschk, Natalia Timerman, Paula Carvalho, Paulo Scott, Tulio Custódio — além do meu próprio, já que também participo desta coletânea como autora.

Organizar esse livro ao lado da equipe da editora Instante e vê-lo publicado num período pré-eleições foi uma experiência muito rica, pois a leitura de cada ensaio contribui com uma questão e uma reflexão específica, partindo de diferentes obras e contextos. Mas podemos dizer que, de forma geral, o modo de vida neoliberal, produtor de exclusões sociais, culturais e econômicas, é criticado sob diversos aspectos. A ideia otimista do humanismo, antropocêntrica, também é colocada em xeque — principalmente porque, em seu centro, sempre existiu uma ideia muito específica de quais seres humanos estariam no topo da hierarquia e fariam parte da “espécie vencedora”, enquanto tantas pessoas, animais, florestas, matas, rios, lagos e oceanos são transformados em meros produtos a serem explorados num utilitarismo narcísico.

Com o livro, convidamos leitores a deixar de lado as defesas e os conceitos prévios para que possamos pensar melhor em conjunto. Com sorte, quem sabe possamos não apenas adiar o fim, mas aceitá-lo para, então, dar vida a um recomeço, estabelecido em termos mais gentis e horizontais com a nossa espécie e com as espécies companheiras, com quem dividimos a casa e a jornada, com quem podemos dividir — e multiplicar — a vida. Outubro vem aí e com as eleições, um pouco de esperança. É hora de escolher com muita responsabilidade o Brasil que queremos ser. 

Esse texto partiu da apresentação escrita por Fabiane Secches para a antologia Depois do fim, publicada pela editora Instante.

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