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Fugas e Residências, por Nara Vidal

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Nara Vidal é autora dos romances “Eva” e “Sorte”, e do livro de contos “Mapas para Desaparecer”. Nascida em Guarani (MG), ela é formada em letras pela UFRJ com mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. Direto de Londres, escreve para CLAUDIA sobre as múltiplas experiências da vivência feminina.
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Ócio pago

Viver de escrever pode ser, ainda, um tabu, por isso o trabalho de uma escritora precisa ser valorizado e também respeitado

Por Nara Vidal
10 nov 2022, 08h30
ócio pago, coluna Nara Vidal
 (Nara Vidal/Acervo pessoal)
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Quando Virginia Woolf escreve, em Um Teto Todo Seu, sobre seu desejo de ver mais livros publicados por mulheres, há uma categoria que merece mais reflexão do que o usual. Virginia quer que as mulheres escrevam livros de viagem. Aí, eu começo a pensar no salto de quase 100 anos desde a publicação do seu ensaio mais conhecido e a relação que as mulheres têm com seu direito a flanar pelo mundo.

Ainda que a autora tenha imaginado que um período de cem anos fosse suficiente para se identificar um avanço, tanto na literatura de viagem, quanto no próprio direito básico de ir e vir, sentimos, nós mulheres, ainda o peso das contas que achamos que temos que prestar quando andamos sozinhas por aí. 

Junto a isso, um outro desejo de Virginia era o de que tenhamos, nós escritoras, a possibilidade de vivermos da nossa escrita. Convenhamos que Virginia sonhava alto. Mas, curiosamente, escrevo daqui de um lugar incomum. Estou sentada no quarto de um hotel chamado Jerônimos 8, em Belém, na cidade de Lisboa, que me recebe para que eu faça exatamente isso: escrever sobre a minha viagem. Não é só generoso que aceitem me receber para que eu fale de viagem; é inteligente. Não é a primeira vez que escrevo sobre hotéis e viagens. Também não é a primeira vez que viajo sozinha. Aliás, é raro que eu viaje acompanhada. Ainda assim, penso no que a escrita me proporciona.

Antes da pandemia, em 2019, vim, precisamente, para Lisboa com a minha filha, depois com o meu filho, em viagens separadas. Em todas as várias vezes, ficamos em hotéis sobre os quais eu escreveria para revistas e sites de viagem. Minha filha identificava aquela atividade quase que como um milagre. Ela imaginava que esses lugares abriam suas portas para mim e eu passava dias lá aproveitando esse parêntese da vida real. Até que parei para explicar que eu estava ali a trabalho. Ainda que identificasse a confusão no seu olhar, gostaria que ela entendesse que a escrita e as palavras que eu escolho me levam a lugares, me deixam flanar e, sim, pagam minhas viagens. Já ouvi quem perguntasse como consegui ser esperta assim, como se minhas estadias significassem um desequilíbrio de valores. Como se os hotéis fossem um privilégio e a minha escrita inferior dentro da comparação dos preços das contrapartidas. Como seu tirasse proveito e depois, ao fazer o check out, sumisse.

Portanto, viver de escrever pode ser, ainda, um tabu. Algo não falado, ou se falado, algo a ser explicado. É verdade que a escrita é ingrata no que se refere a conta bancária. É preciso contornar a situação com outras atividades. Mas a liberdade que o privilégio de escrever proporciona, pode ser, de fato, invejável. Há um ano, vim para Portugal passar dois meses numa residência literária. Minha casa era um hotel onde eu começava meus dias na piscina. Uma conhecida que ganha dinheiro como advogada confessou que estava perplexa com aquela “vida boa”. Dois meses comendo, bebendo, dormindo de graça. Como se fosse mesmo de graça. Como se, de novo, a minha escrita que não acontece só enquanto escrevo para existir ela precisa sumir, precisa de ócio fosse mesmo tão desvalorizada que é impossível entender que tanta diversão possa originar disso.

Afinal, essa à toa, boêmia, com um quê de irresponsável precisa sofrer nesta vida. Mas sofrer, para mim, não é ter que recusar a compra de um carro do ano. Meu sonho é mesmo ter ruas boas para andar de bicicleta. Meus sofrimentos são coletivos. A pobreza do mundo, o desperdício de comida, o frio que mata quem não mora em lugar nenhum. Ficar sem TV, sem roupas caras, não me custa nada. Quando, então, minha escrita me coloca num lugar que tanta gente se sacrifica para pagar, e a contrapartida para mim é escrever, ou seja, trabalhar, me apontam o dedo em riste, olhos arregalados e me categorizam como uma bonne vivante porque curtir a vida e escrever enquanto isso é muita sorte, certo? Certo!

Tomo meu café, meu banho, tomo notas do que quero ver, fotografar. Tomo ar. Os pés pra fora do hotel. O sol vou tomar também, com o vinho, mais tarde. É domingo. É Lisboa e cai sobre os meus ombros uma imensa sorte de viver enquanto trabalho.

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