Nossas vidas acima de tudo
Ao falarmos de sociedade, precisamos ampliar a dimensão da crença para o fato, para o científico, para o que pode ser comprovado
São Paulo, 25 de maio de 2020
Nesta segunda-feira, 25, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanon Ghebreyesus, anunciou que a suspensão “temporária” do uso de cloroquina e hidroxicloroquina nos ensaios clínicos de pacientes com Covid-19. O uso dos medicamentos, criados para combater a malária e doenças autoimunes, foi amplamente difundido e popularizado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sem nenhuma comprovação científica de sua eficácia – importante lembrar que o presidente americano sugeriu que as pessoas tomassem desinfetantes e água sanitária no tratamento há pouco mais de um mês, tendo como resultado várias internações de americanos em decorrência do uso dessas substâncias. Aqui no Brasil, temos certa empolgação e defesa do uso tanto da cloroquina quanto da hidroxicloroquina, também sem nenhum embasamento científico, em uma suposta crença em forças divinas – motivo que resultou no pedido de demissão de outro ministro da Saúde em meio a uma pandemia. Brincam com o desespero, o medo e a fé das pessoas.
Segundo estudo da Revista Lancet, criada em 1823 e uma das mais prestigiadas da medicina, nem o uso da cloroquina nem o uso da hidroxicloroquina, sejam isoladas sejam combinadas a antibióticos, apresentaram qualquer benefício aos pacientes afetados pela Covid-19. Muito pelo contrário. O estudo é o maior sobre tratamentos para a doença, tendo analisado 96.000 pacientes em 671 hospitais. E o verificado foi o aumento de arritmia cardíaca e de morte entre os que tomaram os medicamentos. Por grupos, o estudo foi realizado com pacientes que não tomaram nenhum dos medicamentos e tiveram mortandade em 9,3%; entre os que tomaram apenas cloroquina, a mortandade foi de 16%; e entre os que tomaram hidroxicloroquina e antibióticos, a mortandade foi de 23%.
No Brasil, foi realizado um ensaio clínico, com grupo bem menor, que teve de ser interrompido porque os pacientes tiveram complicações coronárias. Nenhum estudo até agora demonstrou qualquer eficácia do uso destes medicamentos. Segundo a médica Pilar Ruiz Seco, que participa do programa Solidarity da OMS, conjugação de esforços de todo o mundo na investigação de quatro tipos de tratamentos para a covid-19, esse estudo pode fazer com que as pessoas privilegiem e enxerguem ciência como a principal arena de luta para combatermos a pandemia, já que esses medicamentos “não tinham mostrado nenhum benefício contra dois coronavírus da mesma família do atual, o da SARS (2003) e o da MERS (2012)” e se pergunta “por que deveríamos vê-lo agora?”.
A questão fundamental nisso tudo é que tenhamos a dimensão de que crenças são importantes para as nossas esferas individuais da vida. O convívio em sociedade demanda de nós acordos e pactos coletivos, de bem-estar de todos os que constroem comunidade conosco. Ao falarmos de sociedade, precisamos ampliar a dimensão da crença para o fato, para o científico, para o que pode ser comprovado. E isso não significa abandonar nossa espiritualidade ou religiosidade, já que são dimensões importantes, muitas vezes, para que consigamos superar momentos tão conturbados. Além disso, precisamos nos perguntar a quem interessa uma produção superdimensionada e em escala global de determinadas substâncias e medicamentos, para que nossas vidas não sejam colocadas em segundo plano e o lucro de alguns poucos interessados sejam as prioridades.
Obviamente, esses estudos não são martelos finais, ainda conhecemos pouco desse vírus e suas consequências. Mas, muito está sendo estudado, discutido e formulado nessa luta que travamos. Cientistas gabaritados, especialistas em suas áreas, do mundo todo estão nessa luta contra o relógio, com o foco em salvar vidas. E é nisso que precisamos focar. Não em quebras de braço que poucos benefícios têm trazido para nós, como comunidade.