Hoje, sou puro ressentimento
Sabe aqueles planos que foram por água abaixo com a pandemia? A escritora Juliana Borges fala sobre a frustração pelo motivo e cenário atual
São Paulo, 23 de junho de 2020
Me desculpem, mas hoje sou puro ressentimento. Não é por mal e é por uma coisa fútil. Mas eu tenho meus dias de futilidade e mereço tê-los. Quer dizer, é e também não é fútil. Porque também era oportunidade profissional.
Me dei conta no domingo e apertou mais hoje, ao lembrar que eu estaria em Paris. Ah, que momento mais “white people problems”. É. Mas seria importante para mim. Um seminário incrível sobre Justiça, Feminismos e Democracia estaria acontecendo nesse momento, reunindo pesquisadoras e ativistas de vários continentes. A ida não seria fácil, porque o euro já estava e ainda está pelas tampas. Mas a oportunidade de realizar intercâmbio de saberes, trocas sobre pesquisas e estratégias de ativismo seria incrível.
Mas, como disse, hoje, eu sou apenas rancor. Por uma pandemia que acontece devido à ação violenta do homem em sua relação com a natureza. Por uma pandemia que já tirou mais de 50.000 vidas brasileiras quando muitas poderiam ser evitáveis se tivéssemos ações concretas e sérias pela vida e não uma política de morte legitimada e ocupante do Palácio do Planalto. Há quem diga que são coisas da vida. Não são. Médicos tendo de escolher quem usará um respirador não é uma adversidade da vida. É fruto da ausência de políticas que, se não começaram hoje, estão sendo aprofundadas agora com escárnio diante de milhares de famílias que sequer os rituais de luto e despedida estão podendo fazer.
Sim, meu ressentimento primeiro, a vontade de viajar, é fútil. É uma adversidade absolutamente contornável, que é resolvida com um adiamento de encontros, com cancelamento de reservas ainda em tempo, com projeções futuras positivas. Mas o ressentimento sobre como chegamos nesse cenário, em que choramos vidas e mais vidas todos os dias… esse vai demorar a passar. Esse, eu sequer sei se um dia vai passar.