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Diário De Uma Quarentener

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.

Funk também é cultura

Juliana lembra que o movimento funk se inicia como crítica social e depois tem uma série de ramificações, assim como acontece no rap, no samba, no rock

Por Juliana Borges
21 jun 2020, 20h00
 (Fabio Formaggio / EyeEm/Getty Images)
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São Paulo, 21 de junho de 2020

“Eu só quero é ser feliz/ andar tranquilamente na favela onde eu nasci/ E poder me orgulhar/E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. Quando pensamos em funk hoje, pensamos no funk ostentação. As correntes de ouro, os carrões subindo o morro, as festonas em piscinas regadas a churrasco e letras ostentando toda essa abundância. Geralmente, as pessoas olham isso sem qualquer contextualização, sem qualquer preocupação de como analisar o que esse universo significa, sem entender que ali estão anseios, mensagens de positividade. A vida já é muito dura na favela e mostrar que você quer vencer é tido como algo positivo, como uma forma de mostrar aos crias que não se deve limitar os sonhos. Óbvio que há toda uma crítica ao consumismo. Mas, a gente está em uma sociedade consumista. A questão é: a responsabilidade é da molecada ou de uma discussão mais profunda da sociedade sobre os padrões de consumo? E olha que a gente tem falado bastante disso por aqui. De como o nosso modelo de consumo e produção tem impactado economica e ambientalmente em nossas vidas. E isso também impacta no nosso comportamento. Mas esse é assunto para outro dia. Porque hoje é dia de funk, bebê.

Eu amo funk e não nego. Assim como amo música clássica e Stravinksy. Sem qualquer hierarquização dessas culturas. Há por aí filósofos que questionam a qualidade cultural do funk. Eu vejo uma infeliz reprodução do que pior poderia ser extraído da Escola de Frankfurt. Aliás, eu chamaria de frankfurtianos fajutos, já que o jazz já deu muitos tapas na cara da alma de Theodor Adorno. O fato é que o humano tem capacidade de fazer uso e transformar as diversas tecnologias culturais que produz.

Assim como o samba, o rock, o jazz e o rap, o funk tem sido a bola da vez da criminalização. A bola da vez do que não pode ser considerado cultura. Até que o mercado consiga capitá-lo e comercializá-lo, embranquecendo o ritmo, tirando das favelas. Daí, surgirá alguém para dizer que, então, a expressão músico-cultural é válida. Me causa um certo alívio saber que o funk segue resistindo bravamente a essa “domesticação”. O rap o faz, mas já adquiriu certa legitimidade. Até porque, os processos são deglutidos e recriados. E acredito que muita gente do rap e do funk ficou mais atenta a processos coloniais que avançaram sobre ritmos e expressões culturais negras, principalmente como o jazz e o rock. No caso do primeiro, há um descolamento das comunidades, infelizmente. No caso do segundo, eu vejo cada dia mais a infeliz citação por pessoas negras de que seria um ritmo branco. O metal e o heavy metal podem até ser. Mas a raiz da invenção, a gente já falou dela por aqui. A impressão que tenho é que cada vez mais outros movimentos artísticos e gerações seguintes vão aprendendo com esses processos e lidando melhor com ele.

Mas diante de toda essa áurea preconceituosa que envolve o funk a partir dos olhos da sociedade, principalmente das classes médias e elites, e que se traduz sempre com medidas e tentativas de criminalização, o funk, e falo enquanto movimento, vai se espraiando e mostrando sua complexa expressão. É assim que eu vejo o perfil de Instagram “Funkeiros cults”. Acredito fortemente que é uma das melhores experiências da juventude no último período.

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A página no Instagram “Funkeiros cults” já tem mais de 111 mil seguidores, sendo que foi criada apenas em maio desse ano, há cerca de um mês. Criada por Daryel Teixeira, de 21 anos, de Manaus, a página tem como epígrafe “O juliet não impede de nós ver novos horizontes” e tem como conteúdo memes de funkeiros segurando livros e com uma frase que sintetize a principal ideia da obra na linguagem “dos cria”. O criador da página, Daryel, em entrevista para o site do Kondzilla, um gigante do funk, disse que resolveu criar a página porque sempre gostou de funk, de literatura, cinema e filosofia. E que muitas pessoas estranhavam quando ele assim se apresentava, como se fosse contraditório ser funkeiro e gostar de cultura. Ao ver essa frase de Daryel, me lembrei da formulação de feministas negras, principalmente da intelectual afro-americana Patricia Hill Collins, ao falar de um “não-lugar” para pessoas negras, e periféricas, que a branquitude não compreende em como ascende culturalmente e adentra espaços dessas elites culturais, como universidades, por exemplo. Ao mesmo tempo que esse estranhamento também acontece em nossas comunidades, por não estarmos falando muito a língua dos nossos territórios.

O surgimento dos memes veio, justamente, para se contrapor a um estereótipo do que é ser funkeiro, mas acredito também tem se tornado um espaço de aprendizado. A partir da página, muitos professores e outras pessoas que curtem e vivem a cultura funk e também gostam de leitura, cinema, sociologia, filosofia e história passaram a se oferecer para as trocas ou mesmo pedir dicas literárias. Assim, criou-se a comunidade que faz trocas diárias e intensas sobre livros de diversos assuntos. E é claro que eu estou lá! Alguns agora, inclusive, produzem vídeos explicando alguns conceitos na linguagem dos crias, como os que explicam os conceitos de Karl Marx e de Friedrich Nietzsche.

Em meio a esse caos tem sido um alento acompanhar essa página, ver as trocas e incentivos para que cada vez mais outros se interessem por tantos temas importantes para discutir a sociedade. E essa página me lembrou o trecho de funk citado logo no começo. O movimento funk se inicia como crítica social e depois terá uma série de ramificações. Assim como existem no rap, no samba, no pop, no rock – basta lembrarmos que, apesar de um certo conservadorismo no rock, ainda existam bandas como Rage Against the Machine e System of a Down, com uma forte crítica social. O mais importante nisso tudo é não criarmos estereótipos. Já deveríamos ter aprendido que eles são péssimos e servem para hierarquizar pessoas, grupos, culturas, sociedades inteiras como o intuito de dominar e explorar. Não dá mais, certo? Mais do que o desconforto com um “não-lugar”, a página Funkeiros Cults vem na ideia de defender que lugar de funkeiro é em todo lugar, que lugares são dinâmicos, instáveis e até um pouco fora de moda.

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