Mulheres se reúnem para falar de cerveja e celebrar o feminismo
O coletivo, liderado pela sommelier Beatriz Ruiz, cria rótulos homenageando mulheres inspiradoras
Em uma varanda iluminada por varais de luzinhas, cerca de 40 mulheres brindam. Elas seguram copos de cerveja coloração intensa, âmbar, e sabor marcante, chamada Kitty. O encontro é da Goose Island Sisterhood, uma confraria de mulheres criada em 2017. “Nosso objetivo é desmistificar o universo da cerveja para mulheres de várias realidades e com interesses diferentes”, explica a sommelier e fundadora da confraria, Beatriz Ruiz. Formada em letras, Beatriz é gerente de conhecimento cervejeiro da Ambev, gerente de marca da Goose Island no Brasil e a primeira brasileira a obter o título de Certified Cicerone, certificado internacional que confirma a capacitação de profissionais de toda a cadeia cervejeira. “Eu comecei a trabalhar nesse mercado em 2012 e percebi que as plateias de eventos eram, normalmente, formadas por homens. Queria trazer mais mulheres para esse mundo.”
Ela conseguiu. Naquela noite, o agito era grande. Uma DJ tocava músicas suaves, cantadas por mulheres e a animação era palpável. Seria lançado ali a Kitty, o sexto rótulo criado pela confraria, que tem, além de três mestras-cervejeiras, arquitetas, jornalistas, professoras… Foram quatro cervejas no ano anterior, uma por trimestre. Todos os rótulos homenageiam brasileiras que tiveram relevância nas áreas em que trabalharam. “E o lucro da venda é doado para diferentes instituições de caridade que trabalham com empoderamento feminino”, diz Beatriz. No dia em que CLAUDIA esteve presente, a instituição escolhida foi a Associação Beneficente Fraternitas Nosso Lar, que auxilia mulheres grávidas e idosas sem apoio familiar.
Para Beatriz, a cerveja é um objeto social, que reúne pessoas em casa, no bar, com o par ou com os amigos. “É a bebida mais democrática do mundo, que chega a diferentes pessoas, de diferentes classes sociais, religiões, localizações. Acho que fala com todas essas pessoas, então pode passar uma mensagem.”
As cervejas femininas e feministas
A primeira cerveja criada foi para a escritora Carolina Maria de Jesus, nascida em 1914. Moradora de favela em São Paulo e catadora de lixo, ela retratava o cotidiano em cadernos. Foi uma das primeiras autoras negras do pais e expôs de maneira crua e realista a luta para melhorar a condição financeira e conquistar respeito por ser mulher e negra. Depois, Enedina Alves Marques foi a homenageada. A curitibana foi a primeira negra a se formar engenheira no país. Em seguida veio Nísia Floresta, a precursora do feminismo brasileiro. Educadora, fundou a primeira escola do país que ensinava ciências e línguas para as meninas. Essa cerveja foi criada em parceria com a ONG feminista Think Olga. A quarta foi Luz Del Fuego, dançarina capixaba que cavou os direitos das mulheres. Quem se juntou ao projeto desse rótulo foi o Maravilhosas Corpo de Baile, grupo feminino e feminista de dança paulistano.
Este ano, as homenageadas foram a ensaísta e escritora Heloisa Buarque de Hollanda e a jornalista esportiva Kitty Balieiro, a primeira a entrar para a equipe de esporte da TV Globo em São Paulo. Kitty reuniu amigas, contou histórias e relembrou vitórias nessa trajetória em que lutou para abrir espaço para outras mulheres. No evento, placas destacavam chamadas de jornal machistas e ofensivas do esporte – e permitiam que as pessoas presentes reescrevessem as chamadas para torná-las mais igualitárias. “É uma área em que a mulher tem que se provar cinco vezes mais do que os homens. Hoje vemos movimentos como o ‘Deixa ela trabalhar”, mas antes isso não existia, era difícil ultrapassar barreiras”, diz Beatriz.
O mito de mulher não gostar de cerveja
“Para o paladar brasileiro, cerveja, no geral, é muito amarga. Preferimos o doce. Por isso, muita gente estranha quando bebe pela primeira vez”, conta Beatriz. As mulheres, culturalmente, são afastadas da cerveja. Criou-se o mito de que nós não gostarmos da bebida pelo sabor. “Poucos sabem, mas as mulheres foram as primeiras a produzir cerveja. Na idade média, elas dominavam esse conhecimento. Depois, os monges, os únicos que tinham acesso à educação, começaram a fazer cerveja. E quando aconteceu a revolução industrial, e os homens passaram a manusear máquinas, elas foram fazer outros serviços e perderam de vez esse espaço”, explica Beatriz. Para ela, era uma maneira da mulher ter independência. “E podemos suspeitar que, por isso mesmo, foi afastada dessa habilidade.”
Com o passar dos anos, a publicidade manteve a mulher afastada da cerveja fazendo propagandas machistas. Nós nunca aparecíamos bebendo ou produzindo, só servindo e em roupas sensuais. “Um estereótipo que a maioria das marcas está superando agora”, diz Beatriz. Esse é um dos motivos da confraria, mostrar que mulher pode beber cerveja, falar sobre, ir ao bar sozinha. “Muitas vezes, em viagens, vou sozinha a bares e as pessoas olham, como se estivessem se perguntando:’O que essa mulher está fazendo sentada aí sozinha?’. E logo pensam que estamos esperando alguém ou que tomamos um bolo.” Para acabar com isso, desmistificar é o caminho. E isso começa quando nos unimos para aprender, discutir e disseminar informação, mudando a cultura de exclusão desde a base.