Se você ama Jane Austen, pode gostar de Bridgerton?
Julia Quinn se inspirou também na escritora inglesa, tomando liberdades para criar Bridgerton. O quanto isso compromete os fãs de Austen?
A série Bridgerton foi meio que a ‘salvação’ durante a pandemia, porque no auge dos dias em que tudo lá fora estava incerto, a Netflix nos levava à uma Inglaterra dos anos 1800s, em meio à bailes e nobres sofrendo para se casarem e viverem ricos se divertindo para sempre.
O escapismo elevado ao cubo, com um desfile de pessoas lindas, um elenco inclusivo, uma trilha sonora com os sucessos pop tocados em som de quarteto clássico… foi uma dose necessária de açúcar que deixou muita gente querendo mais.
Obviamente os fãs de obras que retratam o período, como Henry James, Edith Wharton ou, Jane Austen, rapidamente pescaram as referências do universo literário da escritora Julia Quinn, que criou a série de livros Bridgerton como uma coleção de romances históricos ambientados na Londres da era regência. Em cada livro, o leitor acompanha a vida e as aventuras românticas da família Bridgerton, composta por oito irmãos e sua mãe viúva.
A Netflix já adaptou quatro e tem conteúdo para alguns bons anos ainda. Mas, gostar de Bridgerton seria uma espécie de heresia, ou oportunismo ou homenagem à Austen?
Os pontos principais de Bridgerton
No contexto histórico, Julia Quinn ambientou seus romances no início do século 19, um período conhecido por suas rígidas hierarquias sociais e elaborados rituais sociais, que como sabemos, é um cenário rico para romance e drama. E de forma simples: todos vivem e morrem para se casar e procriar. Portanto a preocupação ou formação pessoal tem um objetivo direto e comum para homens e mulheres, mas, ainda mais para as Damas.
Se a princípio parece que o tema mal completa um único livro, Austen e Quinn comprovam a atemporalidade e capacidade de contar a MESMA trama em formas diferentes. No caso de Bridgerton, como mencionado, cada livro se concentra em um dos irmãos Bridgerton, o que dá a chance de conhecer e nos envolver com diferentes personalidades, mesmo que os desafios sejam semelhantes.
A dinâmica familiar dos Bridgerton, unidos e amorosos, ajuda quando nos aprofundamos nas histórias individuais porque as interações entre os irmãos e sua mãe, proporcionam alívio cômico e ressonância emocional. As reviravoltas são sempre em cima de clichês, do tipo “antipatia até o primeiro beijo”, “fingir que não está apaixonada enquanto se relaciona com a pessoa”, mas, ainda assim, com a riqueza de cada personagem, acompanhamos com gosto porque há sempre humor e inteligência.
Assim como os autores clássicos de romances do período, Julia Quinn, uma mulher moderna, aproveita sua obra para incluir comentários sobre normas e expectativas sociais, especialmente aquelas relacionadas a gênero e classe e que eram limitantes para a época.
A série da Netflix foi além das páginas, brincando com linguagem moderna e um elenco inclusivo para desafiar o gênero de conteúdo de época e alcançar o público jovem. Funciona perfeitamente em Bridgerton, mas interferiu nas leituras de Persuasão e The Buccaneers, obras onde não cabia a fórmula.
As influências
Julia Quinn citou autores clássicos como Jane Austen e Georgette Heyer para criar a sua franquia, mas é Austen a mais clara e facilmente identificável como fonte para Bridgerton. Afinal, começamos em 1813 o ano da publicação de Orgulho e Preconceito, o que não é coincidência. Como tampouco a quando na terceira temporada da série da Netflix, Eloise diz que está lendo Emma, o romance que a autora dedicou ao Rei George III e que fez grande sucesso na época, é outro easter egg, claro.
Todos os seis romances publicados de Austen apareceram na época da “glória da Regência”, o curto mas notável período da história britânica que cobre os anos de 1811 a 1820, nos quais o primogênito de Charlotte e George se tornou Príncipe Regente em um longo período de loucura de seu pai, George III (mostrado no spin-off, Rainha Charlotte.
Outro exemplo foi o uso de Orgulho e Preconceito como um dos espelhos mais óbvios e na história de Daphne e Simon, da 1ª temporada da série. Incluindo pitadas de Razão e Sensibilidade.
A influência de Jane Austen nos outros autores que influenciam Bridgerton também é inegável. Vanity Fair e Barry Lyndon, ambas de William Makepeace Thackeray, também se passam no período conhecido como “Regência”, o mesmo que está nas páginas de Georgette Heyer.
Funciona e isso porque a obra de Jane Austen frequentemente explora a dinâmica da classe social e a instituição do casamento como um negócio vantajoso e de grande influência do status social. Mesmo que um pouco menos do que as heroínas de Julia Quinn, as de Jane Austen muitas vezes navegam pelas restrições sociais para encontrar agência pessoal.
Outro ponto forte de influência em Bridgerton está na sátira da superficialidade e a hipocrisia da classe alta, algo que o panfleto assinado por Lady Whistledown nunca deixa passar em branco. Só que, enquanto na série ficamos entre os nobres, as personagens de Austen giram em torno da “nobreza rural”, onde havia fortuna, mas nem tanto títulos.
A maior parte dos aristocratas de seu universo estava logo abaixo da realeza e de nobres, ninguém era realmente de sangue azul. Como as regras de comportamento são rígidas e ninguém pode se dirigir a estranhos, os bailes e reuniões sociais são essenciais para que as personagens se conheçam e circulem, assim como que a história aconteça.
Esse isolamento social de um grupo privilegiado, distante da violência e de muitas injustiças da sociedade da Regência, é visto como superficial e fantasioso, mas tem seu mérito narrativo.
Falando em narrativa, a voz da Lady Whistledown, o alter-ego de Penelope Featherington (Nicola Coughlan), lembra muito o estilo e ritmo do texto de Jane Austen, com tiradas irônicas e precisas, onde os mal-entendidos, as falhas de comunicação ou os motivos ocultos regem a ação. Seguindo o exemplo da segunda personagem mais famosa de Austen – Emma (citada na 3ª temporada) – Penelope decide que é hora de encontrar um marido em vez de ajudar outras a se casarem, e, claro, o amor verdadeiro vai atropelar qualquer praticidade que ela tente ter sobre o assunto.
Especialistas se dividem em gostar ou criticar
A principal qualidade da série e dos livros Bridgerton foi a de rejuvenescer o público que ama a obra de Jane Austen, mas há duvidas que a autora fosse “aprovar” como seu mundo é retratado. O sucesso de Austen há mais de um século é creditado às suas observações perspicazes sobre a pequena nobreza rural britânica e seus enredos intrincados e bem elaborados que exploram temas de amor, casamento e mobilidade social.
Sendo que, uma de suas maiores conquistas é a capacidade de criar personagens complexos e relacionáveis, especialmente suas heroínas fortes e inteligentes que muitas vezes desafiam as normas e expectativas sociais. Nesse aspecto é possível apreciar ambas autoras.
O que é nocivo em Bridgerton é o fato de que muitas plataformas apostam em reescrever clássicos para se encaixarem no estilo atual, mas nem sempre é bom. A versão da própria Netflix para Persuasão transformou Anne Elliott em uma espécie de Elizabeth Bennett, deturpando o principal da obra. Anne jamais poderia ser comparada à heroína mais famosa da autora porque enquanto Lizzie era desafiadora e até ousada, Anne era tímida, submissa e arrependida, o oposto das personagens de Julia Quinn.
Mas o principal efeito negativo da “bridgertização” das obras de época é a adaptação da Apple TV Plus do clássico The Buccaneers. Nela, a série tenta desajeitadamente ser uma Bridgerton, com a heroína Nan mais perto da “nova” Anne Elliott: uma mulher do século 21 em pleno século 19. Ou seja, em desacordo perpétuo e sem sentido.
Nada disso é problema em Bridgerton e a terceira temporada, até o momento, é deliciosa. E pode apostar, quando você acaba a temporada a saudade de Jane Austen vai bater forte. Fica o aviso.