Romola Garai traz outro olhar para Mary I em ‘Becoming Elizabeth’
Atriz que prefere os palcos às telas, dá show interpretando a rainha que entrou para a história com fama de “Sangrenta”, “radical” e “desequilibrada”
A excelente série Becoming Elizabeth, da Starzplay, é digna de muitos superlativos. Assinada por Anya Reiss e com roteiro escrito apenas por mulheres, trouxe uma humanidade à trajetória de Elizabeth I, tão popular no cinema, na TV e nos palcos. A Rainha de importância ímpar na História do Reino Unido, teve uma infância e adolescência naturalmente conturbadas, tendo em vista que sua mãe foi condenada por traição e decapitada, isso depois de inspirar o assustador Henrique VIII a romper com a Igreja Católica para se casar com ela. Como “filha de Ana Bolena”, Elizabeth vivia em constante medo por sua vida, justificadamente.
A série, como já falei aqui na coluna de CLAUDIA, revisita um período que a rainha tentou abafar na sua narrativa, quando teria sido abusada sexualmente aos 14 anos pelo padrasto, com a cobertura de sua madrasta, a viúva de Henrique VIII, Katherine Parr. A série – ousadamente para os dias atuais – meio que defende a versão que Elizabeth I oficialmente negava, a de que teve um caso com Thomas Seymour, mas que se manteve oficialmente casta para igualmente manter sua cabeça sobre seus ombros (em outras palavras, não ser executada). Mas isso não é o mais interessante.
A diretora quis, e conseguiu, humanizar as relações entre Elizabeth e seus meio-irmãos, Mary, filha de Catarina de Aragão, e Edward, filho de Jane Seymour. Historiadores divergem de como os três agiam baseados nos conflitos que os afastaram depois, porém, em Becoming Elizabeth há amor e cumplicidade entre eles, sentimentos que são desgastados e estragados pela política da Corte, especialmente a religiosa. A proposta é de entendermos como Elizabeth veio a ser uma das monarcas mais astutas de todos os tempos, pois foram os eventos de sua juventude que a marcaram para a posterioridade. Dessa forma, de quebra, também entendemos Edward e Mary, os dois irmãos que viram oponentes por conta da Fé (a dele protestante e a dela, católica). Em especial, a série resgata a moral de uma personagem tão odiosa nas páginas da História, talvez uma razão pela qual jamais uma grande atriz quis interpretar.
Para os fãs de cinema, podemos lembrar que Romola Garai estrelou ao lado de Keira Knigtley o filme Desejo e Reparação, em 2007 e os apaixonados por Jane Austen lembram como sua Emma Woodhouse em Emma, em 2008, também foi sensacional. Na época, foi apontada como “a nova Keira Knightley” ou a “nova Kate Winslet”, mas diferentemente das duas não se dedicou à Hollywood e sim à uma consistente carreira nos palcos ingleses. Seja estrelando Shakespeare ao lado de Sir Ian McKellen, peças com Dame Helen Mirren ou textos modernos, a atriz se dedica às causas feministas e tem uma carreira exemplar.
E ninguém melhor do que ela para trazer esse novo olhar sobre uma personagem tão antipática. A vida de Mary Tudor, futuramente Mary I, não foi fácil. Única filha de Catarina de Aragão e Henrique VIII, testemunhou como adolescente a dolorosa e humilhante separação de seus pais, sofreu com a madrasta, Ana Bolena, foi considerada bastarda para que sua irmã, Elizabeth I, tivesse prioridade e, depois, passou pelo mesmo processo com o irmão, Rei Edward VI, quando o pai se casou com Jane Seymour.
Foi afastada de sua mãe, teve sua fé católica como um fator de risco de ser assassinada, foi rejeitada de todos os lados. Criança prodígio, desde adolescente teve propensão a depressão, estava frequentemente doente. Quase como uma serva para a irmã (depois, para o irmão), sempre encontrou em sua fé um espaço de conforto, resistindo firme à pressão de conversão para o protestantismo. Apesar das diferenças religiosas, como mostra a série Becoming Elizabeth, os três filhos de Henrique VIII tinham como conexão a luta pela sobrevivência, mas acompanhamos como justamente para se manterem vivos, os irmãos se afastam e se tornam inimigos.
Quando ascendeu ao trono, aos nove anos, Edward se revelou tão fanático por sua fé como sua irmã mais velha. Dessa forma, em seu curto reinado, Edward passou a temer a Mary que, no caso de sua morte, seria herdeira direta e traria a fé católica de volta ao Reino Unido. Ele tentou impedir, colocando a prima Jane Grey na sucessão, mas o golpe falhou. O povo ainda amava a princesa Mary e a apoiou quando precisou tomar armas para ter o que era seu de Direito. Porém, como Rainha Mary I ela ficou imediatamente impopular e temida. Em seu curto reinado, foi implacável quando se tratava de fé, mandando queimar “infiéis”, entre outras coisas. Na série, essa convicção ganha novo olhar depois do que ela mesma testemunha e vive antes de ser coroada.
Não veremos o período sangrento em Becoming Elizabeth, que poderia ser facilmente Becoming Mary porque revela pela primeira vez os traumas acumulados por ela em sua trajetória. Insegura com a posição frequentemente dúbia de Elizabeth, passa a ficar paranoica sobre as intenções da irmã, mas também entendemos finalmente a razão pela qual não a mandou matar, mesmo com muita pressão política para eliminá-la. Em uma atuação sensível e precisa, vemos a Mary de Romola Garai criando uma versão negativa das intenções de Elizabeth, pouco a pouco, diante de cada escolha que ela faz (ou deixa de fazer).
É justo afirmar que a saúde mental de Mary I não era das melhores, que morreu aos 42 anos, possivelmente de cistos ovarianos ou câncer uterino, sem filhos ou amor do marido, da irmã ou súditos. Seu legado ficou conectado à sua fé cega, à sua instabilidade emocional e à sua violenta perseguição religiosa. Acima de tudo, ligada à sua infelicidade. E Elizabeth aprendeu com os erros dela a se manter neutra, solteira e alerta, sempre.
Dito tudo isso, é verdade que Romola Garai, inegavelmente linda, não se parece com os quadros da Rainha Mary I nos seus últimos anos, mas em Becoming Elizabeth roubou a cena. Mais um motivo para quem gosta de História e séries de época, não perder.