Mundo de Kelly Kim: Estilista da Calma São Paulo abre as portas de seu apê
Em seu universo particular, a designer mostra como um lar é capaz de absorver tanto de seus moradores
Quando saem da boca de Kelly Kim, as palavras soam como contos fantásticos, daqueles que nos fazem não desgrudar os ouvidos para não perder nada. A estilista passou bastante tempo escondida atrás da máquina de costura: foi só durante o período da pandemia que desenvolveu a habilidade de se comunicar com seu público. Fundadora da Calma São Paulo, marca de roupas criada por ela e o marido, o francês Adrien Gingold, a empreendedora de 39 anos passou a utilizar mais ativamente seu perfil no Instagram (@dissolvido) nos últimos tempos.
Basta passar por alguns dos seus stories para logo ser cativada pelo carisma de Kelly — que também se autointitula como modelista, cortadora, passadeira e mixadora de estampas, entre tantas outras coisas.
“Foi muito difícil começar nessa parte da comunicação, meu marido é jornalista e precisou me ajudar. Eu fiz um ao vivo para a [revista] Veja, na pandemia, e até passei mal [risos], depois fui aprendendo. Recentemente, dei palestras para muita gente, sobre tecido, moda… Tento imaginar que estou falando com as minhas amigas, ou contando uma história para minha irmã”, explica a estilista, com uma fala tão pontuada que faz esse nervosismo parecer passar bem longe.
Foi no seu apartamento, no bairro de Perdizes, em São Paulo, que a criativa nos recebeu para o editorial destas páginas, mostrando como um lar é capaz de absorver tanto de seus moradores.
Tudo em todo lugar
Logo na porta, adornos coloridos vindos da Índia e o cheiro de incenso revelam a entrada do apartamento de Kelly e Adrien, no qual habitam há dois anos.
A escolha do décor diz muito sobre os criadores da Calma: uma mistura de elementos de cores e origens diversificadas, mas que com organização e senso estético conversam entre si e resultam num ambiente convidativo.
A vontade era ter um apartamento com cara de casa. Para isso, removeram as divisões, como a que separava sala e cozinha — que agora são semi-integradas e divididas apenas por uma moldura curva, assim como a linha que divide o cantinho do sofá no estar.
Essa foi a primeira vez que a moradora mexeu nas estruturas do seu lar: “Mesmo quando morava numa casinha bem pequenininha, eu sempre dei um jeito de deixar o espaço com minha energia, mas aqui certamente foi o lugar onde mais pude expressar meus sentimentos”, acrescenta.
As linhas arredondadas que transmitem conforto, as máscaras de deuses vindas de Goa, na Índia (onde vive sua cunhada e para onde o casal sempre viaja), e as máscaras do folclore coreano resumem bem o mood do espaço.
“Ano passado, fiz uma viagem para a Coreia e tive uma reconexão muito forte com as minhas raízes, tenho me conectado com as minhas antepassadas. Então, essas máscaras vêm muito disso, tem também um colar numa delas, que trouxe do Acre, que fala da minha religiosidade. Adquiri quando fiz uma convivência numa aldeia, não esperava entender tantos cruzamentos da minha vida a partir disso”, relembra sobre algumas de suas jornadas.
Filha de mãe paraguaia e pai coreano, Kelly, que nasceu em São Paulo, sempre sentiu essa mescla cultural efervescer na sua alma — e, consequentemente, se transformar em arte.
“A minha estética precisa ter uma mistura para funcionar. Com o tempo, entendi o porquê dessa busca por estampas, que é a minha essência. Em casa, sempre me contaram histórias fascinantes, meu pai falava como os chineses chegaram na América e a minha mãe me contava todas as histórias do interior do Paraguai, das bordadeiras de ñanduti”, narra ela, se referindo ao bordado característico da cultura paraguaia.
“Minha mãe fala guarani, então cresci nesse universo de poesia e saudosismo. Acho que os imigrantes sempre tentam trazer essa magia.”
Além das histórias fascinantes, foi dos pais que Kelly absorveu o interesse pela costura. Ela passou grande parte da infância observando a mãe costurar para lojas de atacado no bairro Bom Retiro.
O pai, quando vivo, também era costureiro, e foi assim que o casal se conheceu no Paraguai e, já no Brasil, teve Kelly, além de mais duas filhas. Desde que nasceu, a paulistana tinha certeza que queria costurar.
“Acho que desde quando estava na barriga da minha mãe eu escutava o barulho da máquina de costura. Essa memória é muito forte na minha vida.” Com 10 anos, entrou pela primeira vez numa fábrica de roupas e ali viu o sentido da vida tomar forma diante de seus olhos: “Fiquei chocada, tudo ali para mim fazia sentido, o cheiro, as cores, o papel…”, recorda, com carinho.
Eu viajo muito, mas o melhor momento é quando volto para casa. É muito bom conseguir ter essa conexão fora, mas é aqui dentro que eu me sinto eu mesma, acolhida
Aos 14, começou a trabalhar em uma fábrica de costura no bairro do Bom Retiro, já como costureira. Decidida, insistiu para a mãe que queria se especializar na área, e começou um curso técnico. Quando chegou o momento de escolher a faculdade, nem teve dúvidas, ingressou no curso de moda e ali descobriu outro universo.
“Me senti muito atrasada, não sabia da parte artística. Às vezes, faziam rodas de conversas e as pessoas falavam de artistas, filmes e coisas que nunca ouvi falar; para mim, roupa era técnica, não tinha parte política, abstrata, conceito. Isso me deu um desespero, uma fome de conhecimento, e corri atrás.”
Foram 20 anos trabalhando no atacado paulistano: no posto de costureira, depois assistente, até chegar ao cargo de estilista. Viajou para Nova York, Paris e Londres em busca de referências e pesquisas. Por fim, decidiu partir para um sonho antigo ao lado de Adrien: um mochilão pela Ásia por um ano. No retorno dessa viagem transformadora, o desafio foi se recolocar no mercado.
“Voltei casada e sem nenhum centavo”, conta sobre o período que precisou retornar para a casa da mãe. Apesar de nunca ter sonhado em ter sua própria empresa, a solução foi criar, do zero, um negócio que traduzisse a visão do casal sobre a moda.
Hoje com uma unidade física na Vila Madalena, a Calma foi criada em 2018 e se mantém como uma marca de peças atemporais, modeladas à mão e com estampas pensadas para vestir todos os corpos — Kelly usa algumas nesta reportagem.
“É um trabalho de formiguinha. Às vezes, a gente vê uma casa bonita e pensa: ‘Nossa!’ Mas para ela estar arrumada, eu acordei às 5 da manhã. Tudo é processo, até na decoração, eu cheguei e não tinha nenhum livro, daí comprei um e depois outro. Na vida, a gente também vai construindo, é um quebra-cabeça que não acaba. Quer dizer, acaba, ou não…”, reflete.
Das poucas certezas da vida, Kelly carrega uma com bastante segurança: “Eu viajo muito, observo o comportamento das pessoas, faço pesquisas, mas quando chego em casa, me sinto eu mesma, acolhida. Aqui dentro que eu me sinto em casa”, finaliza.