Sentidos que transcendem: o despertar sexual de PCDs
Ivan Baron, Priscila Siqueira e Thaís Coutinho compartilham as suas experiências sexuais enquanto pessoas com deficiência
Pessoas com deficiência (PCD) relatam as respectivas experiências com a sexualidade e nos inspiram a nos apoderarmos de nossos corpos para expandirmos a mente. A seguir, você confere a trajetória de despertar sexual de Ivan Baron, influenciador digital, Priscila Siqueira, psicóloga especializada em acessibilidade, e Thaís Coutinho, gerente financeira e criadora da loja de sexual wellness “Blind Sexy“:
Desejo de ser naturalizado
O influenciador de inclusão Ivan Baron, de 25 anos, fez história no dia 1º de janeiro ao acompanhar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua posse presidencial. Na ocasião, ele era um dos representantes do povo brasileiro. Contudo, a trajetória do jovem (que também é pedagogo) vai muito além deste momento. Aos três anos, Baron contraiu uma meningite viral, que acabou provocando uma paralisia cerebral, deficiência que reduziu a sua mobilidade física.
Até então, ele se considerava uma criança “típica”, que brincava, corria e falava sem grandes esforços. O diagnóstico, porém, lhe obrigou a embarcar, logo cedo, numa jornada de autoaceitação: “A adolescência foi a fase mais difícil, pois é quando tentamos seguir padrões e nos igualar aos demais. Inclusive, entrei em contato com a minha sexualidade num momento extremamente tardio, pois eu achava que aquilo não era para mim. Acreditava que eu não tinha direito de sentir atração por outras pessoas, meninas ou meninos. E também percebia que quem estava ao meu redor não me via como alguém atraente, que você pode beijar ou com quem pode transar. Na verdade, me colocavam como um ‘objeto sagrado’, o intocável, com quem se pode falar tudo, sem fazer nada. Lembro que só queria ser naturalizado, ter essa vivência como qualquer um da minha idade”, conta.
Baron lembra que, como acontece com muita gente, sua primeira vez não foi tão agradável e prazerosa quanto gostaria. “Fiz forçado pela pressão social de que precisamos nos relacionar o mais rápido possível. E o pior, a pessoa com quem eu transei objetificava corpos com deficiência. Ele não via o indivíduo em si”, desabafa.
Atualmente, o influencer revela que vive um processo diário de desconstrução e fortalecimento de sua autoestima, esclarecendo que as coisas definitivamente estão melhores.
Mas ele não deixa de mandar um recado: “A sociedade precisa ter mais humildade e parar de nos limitar apenas como ‘pessoas PCD’. Sou pedagogo, amo música pop, acompanho reality shows, gosto de me relacionar. Tenho defeitos e qualidades, como qualquer um. Precisamos expandir os nossos conceitos, ter mais criatividade e apostar na disposição. Isso gera uma curiosidade positiva. E aqui, não falo sobre a curiosidade que nos objetifica, porque isso não é legal. Estou falando sobre aquele olhar respeitoso que nos inclui como parte do todo.”
Meu corpo e existência importam
Priscila Siqueira, psicóloga de 28 anos especializada em acessibilidade, diversidade e inclusão, tem nanismo. Ela explica que, por conta disso, sua criação familiar aconteceu numa espécie de redoma, onde sua família não a encorajava a ter liberdade de expressão.
“Há muitas pessoas com deficiência no meu entorno, sendo meu pai uma delas. Ele sempre teve medo de que eu sofresse por conta do capacitismo, e de tanto ser podada no ambiente domiciliar, desenvolvi uma personalidade retraída e fechada. Mas aí, logo que entrei a faculdade, algo mudou em mim e senti que eu precisava empoderar o meu corpo, controlar a forma como eu me apresentava ao mundo. Cortei meu cabelo e comecei a pintar de cores fantasia. Isso gerou um enorme problema em casa: eu ouvia que precisava passar despercebida na vida para não ser zombada pelos outros. Isso me doía muito”, conta a presidente do Vale PCD (@pcdvale), primeira ONG voltada para o protagonismo PCD na comunidade LGBTQIA+ no Brasil.
Mesmo diante de um turbilhão de limitações impostas por quem ela mais amava, Priscila se sentiu forte o suficiente para quebrar as normas e expectativas capacitistas que a cercavam ao ser convidada para realizar discursos de empoderamento nos shows do cantor Ciel Santos, em Recife. A partir desse momento, ela notou a importância de sua existência e posicionamento.
“Comecei a olhar mais para mim. Eu sou uma mulher bissexual, sempre tive muita vontade de experimentar e me relacionar com outras pessoas, mas, por muito tempo, eu mal saía de casa. Foi apenas quando comecei a frequentar espaços LGBT, beijar meninas e meninos, que senti um despertar da minha sexualidade. Por isso eu falo tanto sobre a socialização entre pessoas com deficiência: nós não conseguimos nos descobrir sem esse contato, e a falta de acessibilidade e inclusão corta todo o potencial de nossas vidas”, afirma.
Muitos acham que queremos alguém para cuidar de nós, e não é bem assim. Às vezes, só queremos transar e está tudo bem.
Priscila Siqueira, psicóloga especializada em acessibilidade, diversidade e inclusão
A psicóloga também enaltece a importância do autoconhecimento físico: “É essencial que a gente se toque. Não é apenas o outro que pode nos dar prazer. Há brinquedos acessíveis no mercado, basta pesquisar e encontrar o que melhor se adapta”.
Por fim, a criadora de conteúdo reitera que o mundo precisa desconstruir a ideia de que pessoas com deficiência estão sempre buscando um compromisso. “Muitos acham que queremos alguém para cuidar de nós, e não é bem assim. Às vezes, só queremos transar — e está tudo bem.”
Renascimento sexual
Aos 28 anos, a gerente financeira Thaís Coutinho perdeu a visão por conta de um AVC que atingiu o fundo de seus olhos. Ela conta que sempre abraçou a sua vida sexual de forma intensa, buscando quebrar tabus internos e externos. Portanto, ao ficar cega, Thaís precisou renascer emocional e sexualmente.
“Quando eu perdi a visão, fiquei um tempo fazendo reabilitação, e decidi que isso duraria nove meses. Se foram nove meses para eu nascer, nada mais justo do que demorar o mesmo período para reviver. Minha primeira relação sexual como PCD foi semelhante a perder a virgindade novamente. Foi um momento mágico, escolhi alguém que também era cego. Ele teve a maior paciência do mundo, me compreendeu e acolheu. E quando finalmente rolou, eu sentei na cama e chorei. Na época, não entendi muito bem as lágrimas, mas já sentia que estava me redescobrindo como mulher”, compartilha.
Obviamente, nem tudo são flores. Thaís revela que os aplicativos de relacionamento não são nada acessíveis, e quando os usuários percebiam que ela era portadora de deficiência, logo esfriavam o papo. “Os motéis também não estão preparados para nos receber. Se o quarto só pode ser acessado via escada, os funcionários já optam por não te recepcionar. Não há elevador, nem rampa de acesso. Tudo é muito anti-climático”, lamenta.
As vivências turbulentas a fizeram refletir sobre o quanto outras pessoas também estariam enfrentando as mesmas questões na hora de preservar o bem-estar sexual. Por isso, após um período de isolamento potencializado pela pandemia, a profissional criou a Blind Sexy, loja de produtos eróticos focada no público PCD (com direito a diquinhas de uso e outros conteúdos que enaltecem a sensualidade de corpos com deficiência).
“É a minha missão de vida. Muitos acreditam que somos assexuais. Ouvi até piadas da minha própria família! Mas eu digo com toda a certeza: o sexo se tornou a melhor coisa para mim. Você não vê, você enxerga. O foco vai para outros sentidos: o toque, o cheiro, a pegada. Tudo é diferente. Gozar como mulher cega é muito mais gostoso. Eu brinco que, se eu soubesse, tinha apagado as luzes muito antes.”