Por que a menstruação ainda é um tabu em pleno 2017?
Até quando vamos ter que esconder o absorvente ao caminhar até o banheiro mais próximo?
Durante os Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, a nadadora chinesa Fu Yuanhui impressionou o mundo inteiro por admitir publicamente, depois de ter ido mal em uma prova, que seu ciclo menstrual havia influenciado a performance no esporte. “Eu fiquei menstruada ontem à noite, e estou me sentindo bastante fraca e cansada”, ela disse na ocasião. O episódio gerou grande furor.
Durante a sexta-série, em um colégio de São Paulo, depois de abrir a bolsa de Mariana*, um garoto começou a zombá-la pelo que encontrou lá dentro: um absorvente. “Eu fiquei muito chateada, até que um amigo meu disse: ‘Se eu fosse você, ficava em pé na cadeira e falava, Gente, eu menstruo! Eu sou normal!‘”, relembra a jovem.
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Histórias como estas duas não são (nem de longe) incomuns – e para muita gente, a menstruacão segue sendo, em pleno 2017, motivo de piada ou de constrangimento. Por que será?
“A menstruação não é natural”
Muito além de engraçadinho, o fenômeno também é considerado algo estranho, fora do comum – e não só na cultura ocidental. “A literatura antropológica sugere que interdições e marcações sobre a menstruação são presentes em todas as experiências sociais conhecidas”, explica Daniela Tonelli Manica, professora de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de “Menstruação e Corpo Feminino: uma discussão sobre alguns dos embates entre natureza e cultura”.
Famoso na década de 1990, o médico baiano Elsimar Coutinho já chegou a declarar que a menstruação não é nem ao menos um processo natural. Com seu livro “Menstruação, a Sangria Inútil”, ele defende que este fenômeno deveria ser, inclusive, abolido por completo da vida das mulheres, através do uso contínuo de pílulas anticoncepcionais. Segundo ele, isso previniria doenças como a endometriose e o câncer de mama – além de evitar as outras chateações que a tal “sangria” pode vir a causar.
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“A natureza faz a mulher ovular todos os meses para engravidar”, disse Elsimar em entrevista à Revista Superinteressante. “Quando ela menstrua, não está cumprindo o objetivo da natureza, que é ter um filho atrás do outro”.
“Essa tese sempre foi bastante controversa, inclusive entre médicos”, esclarece Daniela, que já analisou o trabalho do médico baiano no artigo “A Desnaturalização da Menstruação: hormônios contraceptivos e tecnociência“.
A professora explica, no entanto, que este argumento foi ganhando cada vez mais força – e acabou levando laboratórios farmacêuticos a começar a vender, entre o fim dos anos 1990 e o começo dos 2000, a ideia de que suprimir a menstruação seria algo libertador para as mulheres.
Mas será que ela é tão desprezível assim?
Sangue bom – só que ao contrário
Toda mulher provavelmente já ouviu pelo menos alguma dessas “dicas” por aí.
Quando estamos menstruadas, não podemos:
- Lavar o cabelo
- Andar descalça ou “tomar friagem”
- Passar remédio em ferimentos alheios – porque vai inflamar
- Tocar na massa do pão – porque vai estragar
- Segurar uma criança – porque senão ela não vai dormir à noite
- Comer pimenta
- Ferver leite – porque vai azedar
- Comer canela
- Andar de bicicleta
De acordo com Bárbara Murayama, ginecologista e coodernadora da Clínica da Mulher do Hospital 9 de Julho, em São Paulo, todas estas crenças são falsas. “Durante o período pré-menstrual, o ideal é manter nossa rotina de exercícios físicos”, ela explica. Andar de bicicleta, portanto, seria na verdade uma ótima ideia!
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Mas então por que será que ouvimos esse tipo de conselho tantas vezes? “Talvez porque antigamente consideravam a mulher menstruada mais frágil e, para preservá-la, a afastavam de afazeres domésticos neste período”, sugere Bárbara.
Algumas destas crenças, no entanto, deixam clara uma visão quase “tóxica” deste período – por que tocar na massa do pão, por exemplo, faria com que ela estragasse?
De acordo com Daniela, a menstruação é interpretada de forma semelhante a fluidos e substâncias corporais como as fezes, a urina e outros tipos de secreção. Ela explica que, a partir do século 20, tanto nas cidades quanto nos corpos estas substâncias começam a ficar mais escondidas – e a causar aversão. No caso específico da menstruação, no entanto, há ainda um fator agravante: o fato de ela estar relacionada ao corpo de uma mulher.
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“São corpos com útero que menstruam, e estes corpos não se enquadram no modelo universal do ser humano – que é o corpo masculino”, explica a antropóloga. “Portanto, a marcação da menstruação como um tipo de fluido corporal ‘estranho’ (porque é ‘feminino’) amplia o seu ‘perigo’, o nojo, a abjeção que a ele é atribuída”.
O termo “chico”, por exemplo, pode fazer uma forma fofa de nos referirmos a estes dias – mas, se sua origem for analisada, acaba se tornando mais uma prova do quanto este nojo da menstruação é real. De acordo com a Revista Superinteressante, “Chico”, em português de Portugal, é sinônimo de “porco” – é daí que vem, por exemplo, a palavra “chiqueiro”. Já dá para entender, infelizmente, a relação, não é?
A chegada das redes sociais – e do “copinho”
Com as redes sociais e a mais recente onda do feminismo, no entanto, este cenário começou a mudar. Um dos maiores protagonistas desta movimentação é o “copinho”, o coletor menstrual.
De acordo com o Nexo, este apetrecho já existe desde a década de 1930 – e o fato de só ter se popularizado nos últimos tempos tem tudo a ver com o feminismo.
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Em entrevista ao jornal, Ana Flávia Pires Luca D’Oliveira, professora de medicina preventiva da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em violência de gênero e saúde da mulher, explica que, de início, o coletor foi proibido justamente porque envolvia a manipulação do corpo da mulher.
Além disso, para Daniela, a popularização atual do coletor também tem a ver com a forma como usamos a internet hoje em dia.
“A amplitude e simultaneidade dessas experiências com a menstruação são potencializadas pela internet”, explica a antropóloga, “no sentido em que não somente várias mulheres aprendem sobre a existência e formas de uso do coletor menstrual, como também passam a compartilhar essas experiências por essa via de comunicação”.
É também nas redes sociais que artistas como a poeta Rupi Kaur têm divulgado o trabalho (e as provocações) que fazem com a menstruação. Rupi, inclusive, teve uma foto sua com um pequeno vazamento menstrual censurada do Instagram em 2015. Mais adiante, porém, o aplicativo voltou atrás e devolveu a foto ao perfil da jovem.
“Acho interessante politicamente, porque é um movimento no sentido contrário daquele da abjeção e inferiorização do corpo feminino”, opina Daniela. “Que busca valorizá-lo em sua visceralidade, como uma experiência efetivamente vivida”.